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São Paulo, sexta-feira, 05 de dezembro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Um peru em Bagdá

Peço ao leitor que me perdoe. Ando tão por conta com o que o George W. Bush está fazendo com o seu país e conosco que não consigo deixar de repicar o tema.
Na sexta-feira passada, não resisti quando vi aquele jumento terrorista exibido como um troféu obtido na Guerra do Iraque. Afinal, descobriram uma das pontas do novelo das secretas armas de destruição em massa.
Nesta semana, abrimos os jornais e o que vimos foi, em vez do jumento, o presidente da maior nação do mundo com uma grande bandeja, mostrando, com um sorriso de felicidade, um peru adornado por batatas, uvas e figos, tostado à moda da Sadia, que ele foi comer em Bagdá, numa viagem secreta, e passar duas horas e meia com os pobres soldados que lutam ali e não sabem por que nem por quem. E sua declaração ainda é mais chocante: "Eu estava procurando uma refeição quente. Obrigado por me convidarem para o jantar. Não consigo imaginar um pessoal tão bacana para o jantar de Ação de Graças". Nada verdade: o peru era frio e Bush não fora convidado por ninguém, realizava uma viagem de marketing eleitoral, com vistas às eleições de 2004.
É o presidente dos Estados Unidos que fala essas futilidades, esquecendo o heroísmo desses jovens patriotas que acreditam na América, e nada diz sobre a missão que eles representam, nada diz sobre a guerra que eles enfrentam, nenhuma grandeza sobre o desastre que é o Iraque, nada sobre a gravidade desse conflito sem saída. Como Roosevelt, Lincoln ou Kennedy se comportariam numa situação dessas?
O Dia Nacional de Ação de Graças é uma das datas mais respeitadas pelo povo americano. Sua origem está no agradecimento a Deus pela graça da vida e na comemoração de uma boa colheita. Foi assim que, em 1621, os "pilgrims", os peregrinos do Mayflower, agradeceram os primeiros frutos da terra prometida. Colheita que era festejada com os índios, porque os índios os ensinaram a plantar, já que eles não sabiam ainda os segredos da terra americana. Davam graças a Deus e à paz.
Bush vai comemorar e agradecer a guerra. O governo americano, com medo da opinião pública, fechou a base de Dover, aonde chegam os soldados mortos, para que os corpos não sejam fotografados pela imprensa. Ele não compareceu a nenhuma cerimônia fúnebre e, por isso mesmo, tem sido criticado por republicanos e por democratas.
Todos pensávamos que envolver Deus no inferno das guerras fosse coisa de um passado primitivo. Já estava em Camões: "Conheça, pelas armas, quanto excede / A lei de Cristo à lei de Mafamede".
Lutero é acusado de ter sido o autor intelectual do assassinato dos camponeses em Frankenhausen. Levado pelo fanatismo, sustentou que "o império deste mundo não pode subsistir sem a desigualdade das pessoas". O padre Vieira pediu a Deus que tomasse parte nas batalhas contra os holandeses que invadiram a Bahia. São Luís, cruzado contra os albigenses, mandou matar todos os cidadãos de Béziers na certeza de que Deus saberia reconhecer, entre os mortos, os seus.
Agora, séculos e séculos depois, Bush come peru usando o nome de Deus para matar os infiéis. Lembrem-se os leitores da fotografia e rezem comigo pelos mortos americanos e iraquianos, que não têm direito a flores nem a peru.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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