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Controlar a realidade, e não a arte
STEPAN NERCESSIAN
Tantos problemas para serem resolvidos e vem um manual perturbar quem está trabalhando e crescendo, que é a cultura brasileira
"QUANDO EU ouço a palavra
cultura, saco logo meu revólver". Nem vou dizer
quem disse isso. Todo mundo sabe
que foi Joseph Goebbells, o homem
de Hitler. Toda vez que sinto no ar o
cheiro de censura, de ameaça à liberdade de expressão, de controle da
criação, saco logo meus pensamentos,
minhas palavras, minhas emoções.
Com todo o respeito pelo pessoal do
Ministério da Justiça que elaborou
um manual da nova classificação indicativa, eu tremi.
Manual de qualquer coisa, geralmente, é uma maneira de explicar e
simplificar uma ação. Tem que servir
para todo mundo. Este do Ministério
da Justiça, com sinceridade, precisa
de outro manual para explicar o manual. É confuso, hermético e perigoso. Perigoso por não ser claro e objetivo. É tão complicado que os autores
gastam boa parte dele para dizer que é
simples e claro.
A Constituição Federal determina
que existam regras de classificação
indicativa para programas de TV, cinema e espetáculos de diversão em
geral. Ela veio para substituir o proibido para menores de 18, 16, 10 anos e
a censura livre do passado.
O manual que se apresenta agora se
calca principalmente na defesa da
criança e do adolescente e dos direitos humanos. Tendo temas tão caros
para todos nós, é evidente que o manual vem bem recomendado. Mas pára por aí.
Os critérios são absolutamente
subjetivos. E, pior, ficará a cargo de
funcionários do Ministério da Justiça
e estagiários de universidades de Brasília a tarefa de dizer o que pode e o
que não pode, a que horas e como a sociedade brasileira vai ter acesso a informação cultural.
Um tiro violento na criação e na
dramaturgia brasileiras. Tem um ditado antigo que recomenda: "Não mexa com quem tá quieto". Tantos problemas para serem resolvidos e vem
um manual perturbar quem está trabalhando, crescendo e evoluindo, que
é a cultura brasileira.
A censura foi banida da vida do brasileiro pela Constituição de 1988. Por
várias vezes ela repudia qualquer forma de controle estatal sobre as criações e defende a liberdade de expressão, independentemente de censura
ou licença.
A censura, como sabemos, nunca se
apresenta como um instrumento de
opressão. Pelo contrário, vem sempre
disfarçada de defesa da sociedade, da
família, dos menores. No final, a realidade é sempre a mesma: fim das liberdades individuais, controle dos artistas e dirigismo cultural. Por melhores
que sejam as intenções dos seus idealizadores, a adoção dessa forma de
controle das artes será danosa para a
cultura brasileira. O manual, tal como
está, não é bem-vindo.
Pense bem: a realidade tem apresentado um espetáculo deprimente e
nocivo à infância e à adolescência no
dia-a-dia. Violência, doença, analfabetismo, trabalho escravo e falta de
perspectiva são uma novela sem fim à
qual nossas crianças assistem e que
protagonizam sempre. Os direitos
humanos são desrespeitados com naturalidade assustadora, e o Ministério
da Justiça precisa agir com veemência e urgência nesses casos.
Mas não, ele prefere controlar a
realidade a partir da ficção. Para uma
criança, ver um filme ou uma novela
que tenha uma cena de violência pode
fazer mal. Agora, ficar no sinal de
trânsito, trabalhar para o tráfico de
drogas, ver a morte de forma banal,
apodrecer os dentes, não freqüentar a
escola etc. pode a qualquer hora do
dia ou da noite.
Pera lá. Esse manual já nasceu errado. Sou presidente do Sindicato dos
Artistas e Técnicos em Espetáculos
de Diversão do Rio de Janeiro (Sated-RJ) e não fomos convidados nem ouvidos na elaboração desse manual da
nova classificação indicativa. Nem
nós, nem autores, nem diretores.
O manual quer se apresentar como
instrumento da democracia, mas, na
verdade, tem alma de opressor. A realidade precisa de controle, a arte, não.
Enviamos correspondência ao ministro da Justiça e aguardamos a resposta. Enquanto isso, pedimos de público ao exmo. dr. Márcio Thomaz
Bastos, prestes a deixar o ministério,
que não legalize esse manual antes de
nos ouvir. Os burocratas, um dia, podem ficar com o manual na mão sem
ter o que classificar, pois, tenham certeza, esse instrumento, da forma como está, vem para tolher a liberdade
de expressão e a criatividade dos artistas brasileiros.
STEPAN NERCESSIAN, 53, ator, é presidente do Sated-RJ (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio de Janeiro) e vereador do Rio
de Janeiro pelo PPS.
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