São Paulo, terça-feira, 06 de fevereiro de 2007

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Controlar a realidade, e não a arte

STEPAN NERCESSIAN

Tantos problemas para serem resolvidos e vem um manual perturbar quem está trabalhando e crescendo, que é a cultura brasileira

"QUANDO EU ouço a palavra cultura, saco logo meu revólver". Nem vou dizer quem disse isso. Todo mundo sabe que foi Joseph Goebbells, o homem de Hitler. Toda vez que sinto no ar o cheiro de censura, de ameaça à liberdade de expressão, de controle da criação, saco logo meus pensamentos, minhas palavras, minhas emoções.
Com todo o respeito pelo pessoal do Ministério da Justiça que elaborou um manual da nova classificação indicativa, eu tremi. Manual de qualquer coisa, geralmente, é uma maneira de explicar e simplificar uma ação. Tem que servir para todo mundo. Este do Ministério da Justiça, com sinceridade, precisa de outro manual para explicar o manual. É confuso, hermético e perigoso. Perigoso por não ser claro e objetivo. É tão complicado que os autores gastam boa parte dele para dizer que é simples e claro.
A Constituição Federal determina que existam regras de classificação indicativa para programas de TV, cinema e espetáculos de diversão em geral. Ela veio para substituir o proibido para menores de 18, 16, 10 anos e a censura livre do passado.
O manual que se apresenta agora se calca principalmente na defesa da criança e do adolescente e dos direitos humanos. Tendo temas tão caros para todos nós, é evidente que o manual vem bem recomendado. Mas pára por aí.
Os critérios são absolutamente subjetivos. E, pior, ficará a cargo de funcionários do Ministério da Justiça e estagiários de universidades de Brasília a tarefa de dizer o que pode e o que não pode, a que horas e como a sociedade brasileira vai ter acesso a informação cultural.
Um tiro violento na criação e na dramaturgia brasileiras. Tem um ditado antigo que recomenda: "Não mexa com quem tá quieto". Tantos problemas para serem resolvidos e vem um manual perturbar quem está trabalhando, crescendo e evoluindo, que é a cultura brasileira.
A censura foi banida da vida do brasileiro pela Constituição de 1988. Por várias vezes ela repudia qualquer forma de controle estatal sobre as criações e defende a liberdade de expressão, independentemente de censura ou licença.
A censura, como sabemos, nunca se apresenta como um instrumento de opressão. Pelo contrário, vem sempre disfarçada de defesa da sociedade, da família, dos menores. No final, a realidade é sempre a mesma: fim das liberdades individuais, controle dos artistas e dirigismo cultural. Por melhores que sejam as intenções dos seus idealizadores, a adoção dessa forma de controle das artes será danosa para a cultura brasileira. O manual, tal como está, não é bem-vindo.
Pense bem: a realidade tem apresentado um espetáculo deprimente e nocivo à infância e à adolescência no dia-a-dia. Violência, doença, analfabetismo, trabalho escravo e falta de perspectiva são uma novela sem fim à qual nossas crianças assistem e que protagonizam sempre. Os direitos humanos são desrespeitados com naturalidade assustadora, e o Ministério da Justiça precisa agir com veemência e urgência nesses casos.
Mas não, ele prefere controlar a realidade a partir da ficção. Para uma criança, ver um filme ou uma novela que tenha uma cena de violência pode fazer mal. Agora, ficar no sinal de trânsito, trabalhar para o tráfico de drogas, ver a morte de forma banal, apodrecer os dentes, não freqüentar a escola etc. pode a qualquer hora do dia ou da noite.
Pera lá. Esse manual já nasceu errado. Sou presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão do Rio de Janeiro (Sated-RJ) e não fomos convidados nem ouvidos na elaboração desse manual da nova classificação indicativa. Nem nós, nem autores, nem diretores.
O manual quer se apresentar como instrumento da democracia, mas, na verdade, tem alma de opressor. A realidade precisa de controle, a arte, não. Enviamos correspondência ao ministro da Justiça e aguardamos a resposta. Enquanto isso, pedimos de público ao exmo. dr. Márcio Thomaz Bastos, prestes a deixar o ministério, que não legalize esse manual antes de nos ouvir. Os burocratas, um dia, podem ficar com o manual na mão sem ter o que classificar, pois, tenham certeza, esse instrumento, da forma como está, vem para tolher a liberdade de expressão e a criatividade dos artistas brasileiros.


STEPAN NERCESSIAN, 53, ator, é presidente do Sated-RJ (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio de Janeiro) e vereador do Rio de Janeiro pelo PPS.

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