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São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

"A Voz do Brasil" sem ditadura

EUGÊNIO BUCCI

"A Voz do Brasil" é uma necessidade, mas não pode ser imposta como ditadura". Essa declaração, publicada há poucos dias pela revista "IstoÉ", passou sem despertar maior interesse. Deveria ter despertado. O seu autor é ninguém menos que o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo. Segundo informou a "IstoÉ", Aldo pretende apoiar a tramitação de um projeto que tornará flexível o horário de transmissão do programa de rádio dos três Poderes da República. Como qualquer alteração nessa matéria só virá se tiver a aprovação do Legislativo federal, as palavras do presidente da Câmara podem ser recebidas como um sinal verde sem precedentes.


A comunicação oficial do Estado brasileiro precisa mesmo se livrar do que lhe resta de autoritarismo


Já era tempo. A comunicação oficial do Estado brasileiro precisa mesmo se livrar do que lhe resta de autoritarismo.
Como todos sabem e ocasionalmente ouvem, a lei manda que a "Voz" seja transmitida, todos os dias, às 19h, por todas as emissoras de rádio. Estas ficam reféns da imposição, não importa o que esteja acontecendo nas cidades em que estão sediadas. É verdade que algumas, graças a medidas liminares, conseguiram autorização para transmitir o programa em horários alternativos, ou seja, conquistaram uma flexibilidade só para si. Isso, contudo, não é solução de longo prazo; apenas gera mais confusão.
Os absurdos causados pela inflexibilidade são inúmeros. Cito apenas mais um. Quando em Brasília os relógios marcam 19h, os do Acre dão 17h, e é nesse horário que a "Voz" tem de ir ao ar na região. Ora, se o programa ainda cumpre algum papel, seria justamente o de levar informações sobre os Poderes da República a comunidades mais distantes, que às vezes só dispõem do rádio para saber o que se passa em Brasília. Ocorre que, às 17h, os adultos dificilmente podem ouvir o rádio e, portanto, continuarão sem saber de nada.
A flexibilidade legal seria uma medida de bom senso para o Acre, para São Paulo, para o país inteiro.
Trabalhando desde janeiro de 2003 no comando da Radiobrás, empresa encarregada de produzir os 25 minutos diários do Poder Executivo nesse programa de 60 minutos, jamais tive conhecimento de uma única justificativa racional para a manutenção do atual regime.
"A Voz do Brasil" foi concebida e implantada entre os anos 30 e 40, tempos de ditadura, quando o Brasil era uma nação integrada pelas ondas do rádio e quando o horário nobre do rádio estava na faixa das 19h. Hoje, somos uma democracia, o país é integrado pela TV e o horário nobre do rádio se deslocou para as 6h. O Brasil que desejou e inventou a "Voz do Brasil" compulsória é um Brasil que não existe mais.
Estamos diante de uma daquelas mudanças com as quais todos saem ganhando. Os ouvintes ganharão, isso não se discute. As emissoras também ganharão, pois terão margens mais amplas para administrar sua programação noturna. Mas não serão esses os maiores beneficiados. É um engano supor que a flexibilidade seja uma demanda que só interessa às grandes cidades ou uma bandeira classista das emissoras privadas: ela é uma exigência de todos os que tentam construir uma comunicação estatal mais contemporânea, mais dialogada, mais saudável.
A maior beneficiada com a adoção da flexibilidade será a imagem dos Poderes da República.
É fácil entender o porquê. A tradição da inflexibilidade autoritária corroeu gravemente, ao longo de décadas, a credibilidade do programa. Com isso, a própria imagem dos Poderes se deixou arranhar. "A Voz do Brasil" virou sinônimo de propaganda chapa-branca, a serviço de instituições envelhecidas, insensíveis e distantes. Modificar apenas a fórmula editorial do programa não adianta.
No cumprimento de seu dever, a atual gestão da Radiobrás, ciente de que "A Voz do Brasil" não pertence às pessoas dos governantes ou a seus partidos, eliminou o proselitismo político que ela carregava, transformando os 25 minutos do Executivo num noticiário objetivo sobre o governo federal, com foco no cidadão, sem ares ufano-promocionais.
O formato mudou, mas a imagem do programa, não. A "Voz" continua sendo vista como uma forma de anticomunicação que mais irrita do que ajuda a maioria dos ouvintes. A carga impositiva com que ela se faz veicular é seu pecado mortal.
O fim do horário obrigatório será, se não um avanço, um passo reparador para começar a corrigir esse anacronismo. A obrigatoriedade é desnecessária e indesejável. Os Poderes da República já dispõem de serviços de comunicação próprios, com sítios na internet, além de canais de rádio e TV. Por meio de caminhos múltiplos e variados, a notícia de interesse público alcança a maior parte da população. Para os bolsões de desinformação que subsistem em algumas áreas do país, "A Voz do Brasil" pode ser útil, mas, mesmo nesses casos, ela funcionaria melhor se seu horário fosse flexível. E, como propõe Aldo Rebelo, sem gosto de ditadura.

Eugênio Bucci, jornalista, é presidente da Radiobrás. É autor de "Sobre Ética e Imprensa" (Companhia das Letras).


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