São Paulo, sexta-feira, 06 de maio de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A consagração do indigenismo brasileiro

MÉRCIO P. GOMES

"Os índios foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil e grandioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os que deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido, e será a coroa de nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação."
Gonçalves Dias, 1849

 

A homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol representa a consagração do indigenismo brasileiro. O ato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fortalece a mais alta tradição de respeito ao índio, que vem desde que Gonçalves Dias reconheceu o índio como parte constitutiva da nação e desde a fundação da República, que instituiu o índio no panorama democrático brasileiro. O indigenismo brasileiro se enaltece também pelo fato de que os povos indígenas que sobreviveram ao processo colonialista (que ainda perdura entre nós) e que pareciam estar fadados ao extermínio somam, hoje, 440 mil pessoas -8% do que eram em 1500, porém quatro vezes mais do que a população de 1955, quando Darcy Ribeiro escreveu seu famoso relatório à Unesco sobre populações indígenas.


A terra indígena Raposa/ Serra do Sol representa a consagração da idéia de territorialidade indígena


A homologação é o ato presidencial que reconhece aquela terra como território de cinco povos -Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona-, que lá vivem tradicionalmente há centenas de anos. Parte desse território estava invadido por pessoas que não reconheciam a legitimidade histórica da posse imemorial desses povos ou que, levianamente, achavam que podiam dele se apossar. O ato do presidente Lula é um ato reparador de uma injustiça. É um ato de resgate da dívida histórica do povo brasileiro para com os povos indígenas, ato este que ele já realizou 54 outras vezes desde a sua posse e que certamente o fará mais tantas vezes até que se conclua o processo de demarcação das terras indígenas no Brasil.
A terra indígena Raposa/Serra do Sol, com 1, 743 milhão de hectares de dimensão, não está entre as dez maiores terras indígenas do Brasil. O que ela representa no cenário indígena brasileiro é a consagração da idéia de territorialidade indígena, isto é, de que uma terra indígena não é tão-somente o espaço de sua sobrevivência física imediata, mas um espaço culturalizado por gerações anteriores, destinado à presença permanente de um povo e de gerações subseqüentes, bem como para o futuro do país. Essa idéia foi iniciada no Brasil graças à tríade patriarcal do indigenismo, formada pelo marechal Rondon, Orlando Villas-Boas e Darcy Ribeiro, quando eles convenceram o presidente Getúlio Vargas da importância da criação do Parque Nacional do Xingu, projetado para ter 4,5 milhões de hectares.
A Raposa/Serra do Sol é a consolidação dessa idéia genial e pioneira -que, aliás, nenhum outro país do mundo tem para suas populações de origem.
Sem deixar de reconhecer grandes dificuldades que os povos indígenas ainda enfrentam no seu dia-a-dia, não se podem negar os avanços que o Brasil já fez e vem fazendo.
Ao vermos um mapa do Brasil com a plotagem das terras indígenas reconhecidas, damo-nos conta do quão grandiosa é a resposta que o país está dando para os anseios dos índios. As terras indígenas compõem um conjunto de cerca de 600 terras, mais de 1 milhão de quilômetros quadrados -uma França e uma Alemanha juntas. Só o Canadá tem mais áreas de terras consignadas aos seus povos indígenas, mas isso ao contarmos a calota polar que nominalmente pertence aos Esquimó-Inuit.
É preciso que o brasileiro se dê conta dessa realidade para conhecer melhor sua nação, para saber o quanto já foi feito em prol dos índios neste país, e disso se orgulhar.
A homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol foi um ato perfeito da nação brasileira. Contou, ao longo de mais de 25 anos, com a torcida do povo brasileiro, e não só da Funai e das organizações indígenas. Teve o apoio do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Poder Legislativo mais alto e do Poder Executivo -através da portaria declaratória de demarcação do ministro da Justiça e do ato final do presidente da República. E, desde sempre, dos próprios povos indígenas que nunca abriram mão desse sonho.

Mércio Pereira Gomes, 53, professor de antropologia na (UFF) Universidade Federal Fluminense, é o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio).
@ - mercio.gomes@funai.gov.br



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