São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fidel Malthus Chávez

EDUARDO PEREIRA DE CARVALHO


Castro assumiu, com Chávez, a defesa da produção de alimentos e se tornou discípulo de Malthus, apóstolo do "laisser-faire"


O MEDO da fome surgiu com Noé, ganhou paradigma com os "sete anos de vacas magras" do alto império egípcio, justificou insurreições da plebe romana e, desde então, freqüenta a civilização ocidental com a regularidade das marés.
Hoje, as duas sociedades contemporâneas que lideram as exportações de alimentos -EUA e Brasil- são chamadas à razão porque se mostram dispostas a mobilizar o continente para garantir uma oferta confiável de biocombustíveis a preços competitivos para o planeta Terra.
Profetas do pessimismo nos ensinam que a população cresce tão rápido que todas as terras agricultáveis precisam ficar reservadas à produção de comida. Com dois séculos de atraso, replicam o catastrofismo do clérigo inglês Thomas Malthus (1766-1834), que, no seu lúgubre ensaio sobre "o melhoramento futuro da sociedade", de 1798, advertia sobre a colisão entre o fenômeno populacional e a capacidade limitada para garantir alimentos a todos os viventes.
O que se passou depois que o fundador da demografia vaticinou o pior figura entre as grandes lições acerca do engenho humano.
Os EUA, por volta de 1915, quando a população arranhava os 100 milhões, usavam 300 milhões de acres para dar de comer à sua gente. No intervalo de quatro gerações, aquela agricultura continuou a ocupar a mesma área, só que atende duas vezes mais gente, fora a exportação de 60 milhões de toneladas anuais de grãos.
O século 20 testemunhou uma revolução na produtividade do campo pela mecanização do plantio e da colheita, melhoramento de sementes, uso intensivo de fertilizantes e defensivos e manejo científico dos recursos naturais. A colheita planetária, de 630 milhões de toneladas em 1950, quando começou a série estatística das Nações Unidas, baterá em 2,1 bilhões de toneladas neste ano.
Também no Brasil se notam progressos da mesma grandeza. Éramos capazes de produzir 20 milhões de toneladas de grãos em 1960 -a colheita da cana estava na mesma ordem de grandeza. Agora, caminhamos para uma colheita de 130 milhões de toneladas de grãos, enquanto a cana supera 400 milhões de toneladas.
Pesquisa e o fomento que abriram caminho para a soja, correção intensiva dos solos pelo calcário, introdução do pasto mais fértil com gramíneas aclimatadas e o maior caso de sucesso na história da moderna agricultura tropical, que foi a incorporação do "cerrado" como fator de produção. Resultado do trabalho: o Brasil, que eventualmente importava várias espécies de alimentos duas gerações atrás, exibe saldo comercial superior aos US$ 50 bilhões no período de 12 meses encerrado em março.
É imperioso notar que a transformação radical da agricultura engatinha: o próximo capítulo virá com as modificações genéticas, com resultados ainda mais surpreendentes. No caso da produção de biocombustíveis, a próxima arrancada só tomará vigor quando acionada pelos maiores países produtores. Tanto Brasil como EUA não têm nenhum motivo nem disposição para dispensar as posições duramente conquistadas na hierarquia dos fornecedores de alimentos para o mundo.
Porta-vozes acadêmicos de uma visão pessimista fazem parte da paisagem das idéias. Recente artigo na "Foreign Affairs" representa uma variedade do magistério cívico fundado por Malthus.
Nessa família de profetas de catástrofes, contudo, irrompem subitamente alguns protagonistas cuja biografia se misturava com a esperança.
Conhecido entusiasta da possibilidade que o etanol da cana-de-açúcar oferece às nações tropicais que dispõem de terras e de água abundante, Fidel Castro virou a casaca no prazo de quatro semanas, arrastando consigo Hugo Chávez, num súbito dueto de lideranças continentais dispostas a se contrapor ao projeto de disseminação da bioenergia co-patrocinado pelos Estados Unidos e pelo Brasil.
Ainda no começo deste ano, a Venezuela manobrava ativamente para criar uma base produtiva de etanol a partir da cana: Chávez articulou acordos para a construção de uma dezena de unidades produtivas com tecnologia brasileira e outras tantas com suporte de profissionais cubanos.
Numa declaração minuciosamente ditada ao jornal "Granma", alinhada com discurso do aliado de Caracas, o veterano Castro assumiu a defesa da produção incondicional de alimentos -e se tornaram, portanto, insuspeitados discípulos de Thomas Malthus, apóstolo do "laisser-faire". Que a fase neoliberal lhes seja leve!

EDUARDO PEREIRA DE CARVALHO , economista, é presidente da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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