São Paulo, sexta-feira, 06 de junho de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

E por falar em dengue...

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK


Não é a primeira vez, mas parece que não aprendemos nada com as anteriores, no sentido de nos prepararmos para um surto epidêmico

PERGUNTAMO-NOS por que Oswaldo Cruz, no começo do século 20, sem inseticidas, sem os recursos científicos que temos hoje, sem nenhuma idéia mirabolante e apenas usando o que era disponível, extinguiu o Aedes aegypti na cidade do Rio de Janeiro.
A motivação para esse feito era muito mais séria do que a doença, era a febre amarela urbana. Agora, o Aedes recolonizou o Brasil e, na cidade do Rio de Janeiro, apronta uma belíssima epidemia para ninguém pôr defeito, na qual constatamos várias inadequações que o acontecimento revela. Estão a seguir especificadas.
- Não é o primeiro evento dessa natureza, mas parece que nada aprendemos com os anteriores, no sentido de nos prepararmos para um surto epidêmico. Não combateram adequadamente os criadouros mosquitais, não houve preparo para o atendimento de um número grande de doentes nem ficaram previstos os meios para que isso fosse possível.
A rede de saúde tornou-se sucateada, o treinamento de médicos capacitados a enfrentar a situação não aconteceu e os salários no serviço público têm garantido com grande eficiência que existam muitos postos não preenchidos e os mais bem pagos ocupados com benesses de áulicos do poder e por amigos dos amigos, sucedendo então indicações.
Melhor fórmula para provocar uma epidemia não deve existir.
- O controle do mosquito poderia ter sido mais estudado do ponto de vista científico: afinal, essa peste anda conosco há anos. Não há, porém, garantia de que pesquisas e investimentos levem a soluções eficientes: só para citar um exemplo, ocorre muita procura de vacina contra a Aids e inclusive a propósito da dengue. Até hoje não existe nenhuma disponível.
Aliás, em vacina contra a dengue estamos até mais avançados e acreditamos que logo ela poderá ser usada.
O sucesso, seguramente, aconteceria mais cedo por meio de investimentos adequadas em pesquisa. Essencialmente, garante-se que pesquisas nem sempre propiciam soluções eficientes; contudo, é garantido que, sem elas, não é esperável resolução de determinados problemas.
Pesquisas neste país são complicadas, especialmente as de caráter clínico, que contam com a total falta de colaboração da Anvisa e da alfândega, prejudicando importação de reativos e insumos (liberação de reativos nos EUA dá-se em um dia; aqui, chega a demorar meses), e da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisas), que emperra qualquer tipo de investigação em humanos com burocracia bizantina, além de demoras homéricas para emitir pareceres, que, em alguns casos, mostram que quem os deu não entende nem de ética, nem de pesquisa, nem de coisa nenhuma.
- A ecologia da interação homem/ mosquito não é a mesma do começo do século. Não podemos minimizar as dificuldades que temos hoje: a população é muito maior, permanecem locais da cidade do Rio de Janeiro onde as autoridades oficiais não entram e as não oficiais, muito preocupadas com merchandising e distribuição de drogas recreacionais, não se mostram interessadas em saneamento e muito menos em mosquitos.
- Nossas autoridades são peritas em jogar umas para as outras as dificuldades. A esse respeito, logicamente êxitos são avidamente disputados.
Não nos parece que o Aedes tenha grandes preocupações com sua vinculação municipal, estadual ou federal -a incapacidade de comunicação e articulação entre as esferas seria cômica se o resultado não fosse trágico.
- Finalmente, cabe-nos reconhecer que nosso povo também tem boa parte de culpa, em virtude do absoluto descaso com normas mínimas de prevenção, obrigatoriamente respeitáveis por toda a população. Mas com a educação que nosso povo recebe em escolas públicas, o que se poderia esperar?
Onde ficamos? Não muito otimistas. Acreditamos que essa epidemia termine, até porque houve mobilização razoável, depois do desastre. Garantimos que vem uma próxima, não sabemos como e quando. Afinal, o vírus 4 da dengue com certeza já está por aí e vai encontrar muitos, muitos indivíduos suscetíveis. Ainda bem que a dengue não inventou o tipo 5.


VICENTE AMATO NETO , 80, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. JACYR PASTERNAK , 68, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Rogério Cezar de Cerqueira Leite: O Lobo e o Etanol

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.