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TENDÊNCIAS/DEBATES
Você se sente vivendo num Estado policial?
SIM
O sepulcro do sonho democrático
ROBERTO ROMANO
"O QUE você acha da situação
política? Nada, porque tenho um primo que achava
e até hoje não o acharam!".
A infeliz anedota, que ouvi na cela
do presídio Tiradentes, quando ali estive detido por mais de um ano sob a
ditadura, permite captar o pavor que
aniquila a fé pública no Brasil. O jogo
de sentidos sobre o ato de achar revela o perigo: quem se imagina livre
num regime de força cedo ou tarde é
"achado" por delação ou escutas telefônicas. Esperança e medo movem
toda vida estatal, mas, com o arbítrio,
o medo anula o diálogo, base do Estado digno de respeito.
O segredo, nos coletivos que atenuam a fé pública, impede a segurança das pessoas. Quanto mais costumeiras as espionagens sigilosas, menos domínio tem o "homem comum"
de sua vida e consciência. O poder
sem regras estupra a lei e paralisa todos os setores sociais ou de mercado.
As revoluções inglesa, norte-americana e francesa dos séculos 17 e 18 exigiram a responsabilização dos governantes e respeito à ordem privada.
Mas logo espiões de Cromwell e de
Robespierre deturparam as novas
formas democráticas. O medo favoreceu o retorno das tiranias dirigidas ao
controle da sociedade civil.
A lógica da espionagem estatal é
descrita pelo inimigo do liberalismo,
o conservador Donoso Cortés no
"Discurso sobre a Ditadura" (1849). O
poder de Estado usurpa a onisciência
divina, além da onipotência: "Não
bastou aos governos 1 milhão de braços, não lhes bastou 1 milhão de olhos.
Eles quiseram 1 milhão de ouvidos, e
os tiveram com a centralização administrativa, pela qual vieram parar no
governo todas as reclamações e queixas. (...) Mas os governos disseram:
não me bastam, para reprimir, 1 milhão de braços; não me bastam, para
reprimir, 1 milhão de olhos; não me
bastam, para reprimir, 1 milhão de
ouvidos; precisamos ter o privilégio
de nos encontrar ao mesmo tempo
em todas as partes. E tiveram isso,
pois se inventou o telégrafo".
O texto é do século 19. Depois apareceram o telefone, a internet e todos
os mecanismos manipulados por
agentes clandestinos.
A cultura da bisbilhotice oficiosa,
portanto, não é recente e se enraíza
nas camadas profundas da sociedade.
E, naquele inferno da consciência, ela
aborta qualquer democracia liberal.
Quando recordo o período autoritário e reflito sobre os nossos órgãos
secretos, sinto medo. Sei o que se esconde em serviços oficiais que podem
invadir nossos corpos e pensamentos,
sem defesa possível. E me preocupa
ouvir o ministro da Justiça parolar
sobre a fatalidade das escutas clandestinas. Não estou isolado ao me
perceber numa imensa jaula, quando
deveria habitar um país livre.
Quem, hoje, nos ministérios, nas
universidades, nas igrejas, nas Forças
Armadas e na própria polícia está livre de controle subversivo e predatório, com as inevitáveis grazinas que
erodem a segurança do Estado?
Foi por senda idêntica que Gestapo
e KGB dominaram os oficiais militares em proveito de partidos e grupos
ilegais. Na URSS, da espionagem estatal falida brotaram máfias de todos os
tipos que atormentam a Rússia.
Um órgão jungido aos poderes públicos invade gabinetes oficiais. Mas,
para chegar até aquele espaço, seu escudo é a lei 9.883/99 (Abin) e o decreto 3.448/00, que facultam "identificar, acompanhar e avaliar ameaças
reais ou potenciais, além de promover a coleta, busca e análise de dados e
de produzir conhecimentos que subsidiem decisões na esfera de inteligência dos governos federal, estadual
e municipal". Tais premissas garantem a usurpação da ordem soberana,
com auxílio de alguns magistrados.
Lúcido Norberto Bobbio, para
quem todo poder oculto "não transforma a democracia, mas a perverte.
Não a golpeia mais ou menos gravemente em um de seus órgãos vitais,
mas a trucida".
Sempre que, graças à coragem da
imprensa, percebo as estrepolias dos
arapongas, recordo os versos de Rimbaud: "Eis o tempo dos assassinos".
Se não matam os corpos com a facilidade de antigamente, eles aniquilam
a esperança. O Brasil, com auxílio do
segredo e da corrupção endêmica, é
imenso e melancólico sepulcro do sonho democrático.
ROBERTO ROMANO , 62, filósofo, é professor titular de
ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e
Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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