São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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EDITORIAIS

AS URNAS E A CRISE


As instituições democráticas brasileiras se reforçam, os controles sobre a política se aperfeiçoam e a esfera pública se torna mais densamente povoada

Mais de 115 milhões de brasileiros estão aptos a exercer, no dia de hoje, o gesto máximo da democracia. Pela quarta vez consecutiva no ciclo recente de democratização, o país vai às urnas para eleger diretamente o presidente da República. É uma marca que revela, ao mesmo tempo, uma fragilidade e uma virtude. Não devemos perder de vista que uma democracia somente se solidifica com décadas e décadas de continuidade institucional. Mas também não devemos hesitar em comemorar o feito por representar mais um passo no caminho correto. Em número de pleitos consecutivos, a chamada "Nova República" já se equipara ao período democrático anterior (1945-1964).
Na democratização recente, parecem fadados a coincidir processos de sucessão presidencial com momentos de deterioração do cenário econômico. Com a exceção de 1994, quando a estabilização conquistada pelo Real promovia um surto de crescimento com distribuição de renda, as outras duas eleições se realizaram em clima de incerteza financeira. Em 1989, houve uma escalada inflacionária aguda; em 1998, era a sustentabilidade do câmbio fixo que estava sendo questionada por um grande ataque especulativo. Este ano, 2002, não foge ao padrão. E o termômetro da incerteza financeira, que engendra atitudes defensivas nos investidores internacionais com relação ao Brasil, é o frenético comportamento da taxa de câmbio.
Porém, se existe uma relação direta entre crises econômicas e ameaças institucionais, o Brasil, ao longo desse processo de redemocratização, tem sido uma exceção à regra. A cada ano que passa, a cada pleito que se sucede, as instituições democráticas brasileiras se reforçam, os controles públicos sobre a atividade política se multiplicam e se aperfeiçoam e a esfera pública se torna mais densamente povoada por atores sociais os mais diversos.
Notáveis foram, nos últimos anos, os avanços no Poder Legislativo. O Senado, que durante todo o período republicano se manteve fechado num corporativismo atávico, abriu-se à depuração interna. Um senador foi cassado e dois parlamentares que ocuparam a presidência da Casa e um ex-líder do governo foram compelidos a renunciar a seus mandatos para não terem o mesmo destino. O Congresso Nacional deu cabo do vergonhoso instituto da imunidade parlamentar ampla, que criava cidadãos "especiais" aos quais a Justiça não tinha acesso. Também reequilibrou a relação entre os Poderes, disciplinando o recurso às medidas provisórias pelo Executivo.
Num gesto inédito de inegável maturidade, cada um dos quatro principais presidenciáveis se sentou à mesa com o presidente Fernando Henrique Cardoso e pactuou termos mínimos de transição diante da necessidade emergencial de o Brasil recorrer ao Fundo Monetário Internacional. Luiz Inácio Lula da Silva, José Serra, Anthony Garotinho e Ciro Gomes tiveram discernimento suficiente para isolar o campo legítimo da disputa política daquele em que todos deveriam estar de acordo, pois se trata de tentar evitar uma grave crise financeira que não interessa a ninguém. Também no que tange à campanha feita neste primeiro turno, apesar de ter sido disputadíssima e de ter contado com espasmos de agressões, o cômputo geral é positivo: os quatro fizeram uma disputa das mais civilizadas também porque uma opinião pública mais atenta impôs limites às ofensas e propugnou por um debate centrado preponderantemente na discussão de idéias e de propostas para os problemas do país.
Cada um a seu modo, imprensa e Ministério Público deram passos decisivos rumo a sua consolidação como instituições de controle do exercício do poder. Procuradores e promotores, com algumas exceções, aferraram-se à sua autonomia profissional e a seus novos papéis (conferidos pela Carta de 88) e souberam evitar a armadilha da rendição aos interesses governantes e a da busca fácil dos holofotes da mídia.
Quanto à atuação dos principais veículos de mídia, a cobertura da campanha eleitoral cuja primeira fase se encerra hoje coroa um processo de amadurecimento. Nunca se deu tanta oportunidade ao leitor, ao ouvinte e ao telespectador de travar conhecimento com as idéias dos principais candidatos. Debates, sabatinas, entrevistas, artigos e reportagens em profusão às vezes até excessiva proporcionaram ao público um leque mais amplo de informações, o que terá contribuído para uma decisão de voto qualificada.
A prática do jornalismo também se aperfeiçoou em busca de um modelo de atuação cada vez mais independente. Aprimorou-se tecnicamente. Este jornal, que sempre cultivou a independência, o pluralismo e o apartidarismo como pilares de sua política editorial e procurou submeter candidatos e partidos, sem distinção, ao mesmo filtro crítico, contribuiu para esse processo. O exercício pleno desse jornalismo crítico, independente e pluralista, entende esta Folha, obriga o jornal, diferentemente do que fazem outros veículos de mídia, a não apoiar nenhum candidato à Presidência, a governo de Estado ou a qualquer outro cargo eletivo.
É verdade que nem tudo são flores no caminho da democracia brasileira. Há muito ainda a conquistar no sentido de sua consolidação. Chagas seculares como a miséria e a má distribuição da renda somente poderão ser erradicadas com o aprofundamento da democracia. A própria vulnerabilidade do Brasil a solavancos da economia mundial, que mais uma vez se manifesta -bem como a nossa incapacidade de romper o padrão de crescimento baixo e espasmódico dos últimos 20 anos-, terá de ser objeto de discussão e de resposta políticas.
Se as crises não interferiram na soberania das urnas nesse ciclo recente de democratização, a verdade é que as urnas têm o poder de interferir nos destinos da nação para torná-la menos sujeita a crises e mais propensa à distribuição do bem-estar social. Daí a importância do voto, direito que os brasileiros exercem neste 6 de outubro num ambiente político e institucional mais sólido e confiável.


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