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São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O São Francisco de volta

FERNANDO BEZERRA

Nada mais oportuno que o desejo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de retomar os estudos para a chamada transposição de águas do rio São Francisco, cuja coordenação entregou ao vice-presidente da República, José Alencar. Pernambucano de nascimento e desde a infância acostumado a conviver com a dura imagem dos retirantes, com seu extenso cortejo de fome, desesperança e, sobretudo, revolta por não terem a opção de viver onde têm suas raízes, ele demonstrou com esse gesto a importância que está emprestando ao assunto.
Esse projeto é tão antigo quanto as secas no Nordeste e vem sendo adiado há mais de 150 anos. No princípio, por falta de recursos técnicos. Depois, por falta de verba. Posteriormente, por razões de natureza política.
Quando ocupei o Ministério da Integração Nacional, no governo anterior, alimentei profundas esperanças de que, finalmente, ele sairia do papel. Mas, infelizmente, não houve suficiente vontade política para que isso acontecesse e, mais uma vez, a sua execução foi adiada, quando todos os estudos técnicos necessários para sua implantação -inclusive a avaliação da sua viabilidade econômica e ambiental- encontravam-se praticamente prontos.
O projeto prevê transporte da água através de canais e dos leitos secos dos rios ao longo da região do semi-árido, a mais pobre do país, onde a escassez de chuvas rivaliza com a do deserto do Saara. Mais especificamente, o traçado do projeto corta os Estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte e, quando atingir a sua capacidade plena, utilizará menos água do que aquela que se evapora no complexo da Companhia Hidroelétrica do São Francisco. Em outras palavras, um volume de dimensões microscópicas, se comparado não à água que realmente é utilizada no São Francisco, mas à que se perde.


Esse projeto [a transposição das águas do rio São Francisco] é tão antigo quanto as secas no Nordeste


Os benefícios da obra, porém, não constituem monopólio dos nordestinos nem mesmo do castigado sertão do semi-árido. Pelo contrário, a transposição significará a queda, acentuada, das tensões sociais em centros como São Paulo e Rio de Janeiro. A diminuição dos fluxos migratórios virá acompanhada da consequente redução dos índices de desemprego, de violência e de multiplicação de favelas, frutos típicos do crescimento urbano desordenado.
Não é só isso. Ninguém desconhece que o Brasil dos dias atuais se debate com agendas contraditórias. Uma, a sua face moderna, apoiada na abertura dos mercados, nas privatizações e na agenda de reformas que o presidente Lula tem proposto com vontade férrea. Outra, a face deprimida, que encontra no Nordeste a sua expressão maior, permanece atrelada ao século 19, como se estivesse irremediavelmente condenada ao fracasso. Essa é uma realidade de aparência, que pode mudar de forma radical se a seca for banida do cotidiano e a região puder se integrar, em definitivo, ao Brasil moderno, aquele que prospera e se aproxima da qualidade de vida da comunidade internacional.
Quando deixei o Ministério da Integração Nacional, faltava apenas o Congresso aprovar o orçamento inicial da obra e vencer resistências localizadas, ditadas menos por questões substantivas do que pelo desconhecimento do verdadeiro sentido do projeto. Algumas sugestões procedentes, como o desvio das águas do rio Tocantins para o São Francisco, em nada iriam obstar o andamento do projeto. Assim, o Nordeste -a região do semi-árido, para ser exato- poderia superar um dos capítulos mais dolorosos da sua historia, feito da triste combinação da seca com o êxodo rural, e voltar ao presente na plenitude da sua capacidade realizadora. O que é absolutamente possível e, de qualquer ângulo que se olhe, inadiável.
Uma obra de tal magnitude é para o início de um governo. Deixá-la para mais tarde é condená-la ao fracasso, mais uma vez, desde que D. Pedro 2º determinou os primeiros estudos, em 1852, afirmando que a obra era tão importante que, se necessário, venderia as jóias da própria Coroa para financiá-la.
De lá para cá mudamos de regime, tivemos inúmeros governos, todos eles comprometidos, em princípio, com a sua realização; mas o projeto não se concretizou. Quem sabe o destino tenha reservado a um presidente nordestino, que viu e sentiu a dureza da miséria e da fome na sua infância, a missão de ter sucesso onde todos os outros fracassaram.
Em isso ocorrendo, o presidente Lula, independentemente do que aconteça com o seu governo, passará para a historia como o presidente que, com a transposição das águas do rio São Francisco, arrancou da pobreza milhões de brasileiros comprometidos com sua terra, que desejam ardentemente produzir, gerar empregos e criar riquezas como os seus irmãos do Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Fernando Bezerra, senador pelo PTB-RN, é vice-líder do governo no Senado. Foi ministro da Integração Nacional (governo Fernando Henrique Cardoso).


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