São Paulo, terça-feira, 07 de janeiro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

África salva

O Brasil tem o dever de socorrer a África: dever sagrado, dever a ser cumprido a despeito das reivindicações urgentes de nosso povo, dever cujo cumprimento nos ajudará a consertar o Brasil.
Desenrola-se na África uma das maiores catástrofes da história: combinação venenosa de Aids, de fome, de desagregação de famílias e de colapso de Estados. Estima-se que 75% dos infectados pelo vírus da Aids no mundo estão na África ao sul do Saara. Ali, onde 80 milhões de pessoas estão também ameaçadas de morrer de fome, 10% da população está infectada. Já em Botswana, por exemplo, os infectados sobem a 39% e, entre mulheres de 25 a 29 anos, a 52%. Abatendo-se sobre as mulheres, a calamidade desestrutura famílias. Produz órfãos aos milhões. Em alguns países africanos, a expectativa de vida já caiu abaixo dos 40 anos. Estados afundam num pântano de incapacidades. Entretanto, em toda a África não há uma única pessoa que esteja sob tratamento custeado pelos governos dos países ricos.
O Brasil é uma duas duas principais sociedades escravocratas da história moderna. Nossa nação foi feita com o suor e com o sangue dos escravos africanos. A África somos nós, ainda que continuemos alienados de nós mesmos. Que dureza de coração ou que incapacidade de imaginar o sofrimento alheio, nessa nossa cultura sentimental e cínica, explica nossa criminosa indiferença?
Dizer que temos entre nós famintos e doentes que devemos socorrer antes de ajudar os africanos é vestir o malogro ético com a confusão conceitual. A cooperação a serviço da compaixão não é gastança de um fundo fixo de dinheiro. É aprendizado de uma capacidade coletiva indispensável à solução dos nossos próprios problemas. Mesmo porque o Brasil pode fazer na África muito com pouco. Já temos programas exemplares de prevenção e de tratamento da Aids. Por que não enviar à África equipes médicas e sociais? Por que não persistir no confronto com as multinacionais da indústria farmacêutica para disponibilizar aos africanos os remédios que disponibilizamos no Brasil? Por que não organizar, para nossa juventude universitária, serviço social que recrute os jovens que deixem de prestar o serviço militar e que engaje alguns deles nessa missão africana? Por que não mobilizar esses jovens para trabalhar em parcerias de educação, de prevenção e de assistência social, como aquelas que já ensaiamos no Malawi? Por que não bater às portas não só dos governos ricos mas também das fundações ricas e das pessoas ricas em todo o mundo para financiar esse esforço?
Será o cumprimento de obrigação elementar de justiça. Abrirá caminho para abraçar o legado africano dentro do Brasil, aceitando e construindo nossa identidade nacional. Aproximar-nos-á dos Estados Unidos, nosso comparsa na escravatura, de maneira mais íntima do que qualquer negociação comercial. Fortalecerá nossa capacidade de atuar em prol do social dentro do Brasil, revelando respostas desconhecidas aos nossos problemas. Ajudará a transformar nossos corações de pedra em corações de carne. Acima de tudo, dar-nos-á idéia engrandecedora de nós mesmos. Ao levantar de nossos ombros o peso de um crime, cobrir-nos-á de glória aos olhos da humanidade.
É menos por ser cruel do que por sentir-se pequeno que o Brasil não socorre a África. Enquanto sentir-se pequeno, jamais será livre, justo ou próspero. Começando por ser magnânimo, acabará por ser e por sentir-se grande. Que a grandeza do Brasil tenha início em atos surpreendentes de compaixão.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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