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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
África salva
O Brasil tem o dever de socorrer
a África: dever sagrado, dever a
ser cumprido a despeito das reivindicações urgentes de nosso povo, dever
cujo cumprimento nos ajudará a consertar o Brasil.
Desenrola-se na África uma das
maiores catástrofes da história: combinação venenosa de Aids, de fome, de
desagregação de famílias e de colapso
de Estados. Estima-se que 75% dos infectados pelo vírus da Aids no mundo
estão na África ao sul do Saara. Ali, onde 80 milhões de pessoas estão também ameaçadas de morrer de fome,
10% da população está infectada. Já
em Botswana, por exemplo, os infectados sobem a 39% e, entre mulheres
de 25 a 29 anos, a 52%. Abatendo-se
sobre as mulheres, a calamidade desestrutura famílias. Produz órfãos aos
milhões. Em alguns países africanos, a
expectativa de vida já caiu abaixo dos
40 anos. Estados afundam num pântano de incapacidades. Entretanto, em
toda a África não há uma única pessoa
que esteja sob tratamento custeado
pelos governos dos países ricos.
O Brasil é uma duas duas principais
sociedades escravocratas da história
moderna. Nossa nação foi feita com o
suor e com o sangue dos escravos africanos. A África somos nós, ainda que
continuemos alienados de nós mesmos. Que dureza de coração ou que
incapacidade de imaginar o sofrimento alheio, nessa nossa cultura sentimental e cínica, explica nossa criminosa indiferença?
Dizer que temos entre nós famintos
e doentes que devemos socorrer antes
de ajudar os africanos é vestir o malogro ético com a confusão conceitual. A
cooperação a serviço da compaixão
não é gastança de um fundo fixo de dinheiro. É aprendizado de uma capacidade coletiva indispensável à solução
dos nossos próprios problemas. Mesmo porque o Brasil pode fazer na África muito com pouco. Já temos programas exemplares de prevenção e de
tratamento da Aids. Por que não enviar à África equipes médicas e sociais? Por que não persistir no confronto com as multinacionais da indústria farmacêutica para disponibilizar aos africanos os remédios que disponibilizamos no Brasil? Por que não
organizar, para nossa juventude universitária, serviço social que recrute os
jovens que deixem de prestar o serviço
militar e que engaje alguns deles nessa
missão africana? Por que não mobilizar esses jovens para trabalhar em
parcerias de educação, de prevenção e
de assistência social, como aquelas
que já ensaiamos no Malawi? Por que
não bater às portas não só dos governos ricos mas também das fundações
ricas e das pessoas ricas em todo o
mundo para financiar esse esforço?
Será o cumprimento de obrigação
elementar de justiça. Abrirá caminho
para abraçar o legado africano dentro
do Brasil, aceitando e construindo
nossa identidade nacional. Aproximar-nos-á dos Estados Unidos, nosso
comparsa na escravatura, de maneira
mais íntima do que qualquer negociação comercial. Fortalecerá nossa capacidade de atuar em prol do social dentro do Brasil, revelando respostas desconhecidas aos nossos problemas.
Ajudará a transformar nossos corações de pedra em corações de carne.
Acima de tudo, dar-nos-á idéia engrandecedora de nós mesmos. Ao levantar de nossos ombros o peso de
um crime, cobrir-nos-á de glória aos
olhos da humanidade.
É menos por ser cruel do que por
sentir-se pequeno que o Brasil não socorre a África. Enquanto sentir-se pequeno, jamais será livre, justo ou próspero. Começando por ser magnânimo, acabará por ser e por sentir-se
grande. Que a grandeza do Brasil tenha início em atos surpreendentes de
compaixão.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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