São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Sobre a desindustrialização

SÉRGIO AMARAL


A globalização cobra o seu tributo. O que é ameaça para uns pode ser oportunidade para outros

Desindustrialização virou a palavra da moda no mundo chamado industrializado. Em geral, vem associada a outras expressões correlatas e igualmente assustadoras, como "outsourcing", na área de serviços e migração de empregos. Esses assuntos têm merecido as manchetes dos jornais e as capas das revistas.
O argumento sobre a transferência de empregos para os países emergentes contém uma parte de verdade, mas também reflete imprecisões e exageros. Em anos recentes, alguns países industrializados exportaram mais capitais do que de hábito. Na França, por exemplo, a saída de capitais entre 1999 e 2001 praticamente dobrou em relação aos três anos anteriores e atingiu uma média de US$ 132 bilhões por ano, enquanto os ingressos se mantinham num patamar de US$ 48 bilhões.
A transferência de capitais decorre, em parte, do processo de fusão de grandes corporações, mas também do fato de que, para sobreviver num mundo mais competitivo, as empresas têm de estar próximas dos mercados consumidores e buscar custos de produção mais baixos. Isso se elas quiserem, como seus governos as estimulam, ser "campeãs da globalização".
Entre 1996 e 2002, o emprego industrial caiu 16% no Japão, 15% no Reino Unido, 10% nos Estados Unidos e na Alemanha. Mas nem tudo se deve à saída de capitais. A queda do emprego na indústria reflete ganhos de produtividade no setor e, em certos casos, um aumento do preço relativo dos serviços em relação à indústria, por vezes estimulado pela demanda por serviços do setor público. A perda no emprego industrial é, assim, compensada em boa medida pela geração de empregos -inclusive de melhor remuneração- no setor de serviços.
No âmbito dessa reestruturação competitiva, as atividades de baixa qualificação são, em maior ou menor grau, exercidas por trabalhadores imigrantes, tanto mais produtivos quanto ilegais, na manchete um tanto cínica de um importante jornal europeu.
A globalização cobra o seu tributo. O que é ameaça para uns pode ser oportunidade para outros. A China parece ter compreendido há algum tempo que, para os países chamados emergentes, os riscos da globalização estão mais do lado dos mercados financeiros, e as oportunidades, do lado do comércio. O ingresso do país na OMC foi comemorado em Pequim como nós festejamos a vitória da seleção brasileira. O governo chinês vem desenvolvendo uma estratégia determinada, continuada e lúcida para atrair investimentos e expandir o comércio exterior: qualificação da mão-de-obra, estabilidade das regras, apoio a setores prioritários, intervenção no câmbio para evitar que se valorize.
De modo surpreendente para uma economia que ainda mantém certa dose de planejamento centralizado, as corporações chinesas têm revelado insuspeita familiaridade com as práticas de mercado: em 2002 investiram US$ 2,9 bilhões no exterior, boa parte dos quais para adquirir empresas em países desenvolvidos, transferir a maior parcela da produção para a China, mas preservar a marca, os canais de distribuição, o marketing e a pesquisa tecnológica.
Os resultados são espantosos em termos de ingresso de investimentos (cerca de US$ 50 bilhões), exportações (da ordem de US$ 350 bilhões) e crescimento (de 8% a 10% ao ano, dobrando o PIB a cada década). Em matéria de desenvolvimento, contudo, as experiências se replicam com dificuldade. No caso da China, assim como no de outros países do Leste Asiático que seguiram pela mesma trilha, é bom lembrar que as taxas de poupança são da ordem de 35%, o dobro da brasileira.
Não obstante diferenças e peculiaridades, a conjuntura mundial continua a sinalizar riscos, mas também oportunidades, entre as quais vale ter presentes:
o casamento de circunstância entre os Estados Unidos e a Ásia em matéria de câmbio (em que os EUA compram e a Ásia financia o déficit) transfere a maior parte dos custos do ajustamento para a Europa, sob a forma de um euro valorizado, que estimula as importações e os investimentos no exterior;
o processo de transferência de segmentos produtivos não se concluiu. A competição continuará a induzir a migração de capitais para a periferia. Os acordos regionais de comércio, entre outras razões, estão estimulando grandes multinacionais a concentrar suas atividades em um ou dois pólos por região. O Brasil é natural candidato a continuar a acolher esses investimentos;
as sensibilidades políticas, associadas a uma lenta e incerta decolagem da economia mundial, ainda não criaram ambiente favorável à aceleração das grandes negociações comerciais. Mas os entendimentos bilaterais e regionais (como foi o caso do acordo CAN-Mercosul) têm condições de avançar;
no Brasil, temos ainda reformas a concluir para reduzir custos de produção e melhorar a infra-estrutura. A despeito das dificuldades, é necessário percorrer esse caminho, pois a retomada de altas taxas de crescimento estará associada à capacidade de atrair mais investimentos produtivos e à continuada expansão do comércio exterior.

Sérgio Silva Amaral, 59, diplomata, é o embaixador do Brasil na França. Foi porta-voz da Presidência da República (1994-99), embaixador do Brasil em Londres (1999-2001) e ministro do Desenvolvimento (2001-2002).


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