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TENDÊNCIAS/DEBATES
Corpos de consumo
ROSE MARIE MURARO E MARIA TEREZA MALDONADO
O modelo ideal de homem e mulher, em vez de elevar a auto-estima, só faz com
que esta diminua e seja substituída por mal-estar
DESDE QUE começamos a trabalhar com mulheres, a pergunta básica que nunca deixou
de ser a mesma é sobre o tratamento
da mídia a respeito do corpo feminino. Agora, contudo, devido ao avanço
da tecnologia, a coisa está se tornando
mais grave. O consumo não é mais sobre a forma física da mulher, que é
sempre jovem, magra e bela, mas sobre seus laços mais profundos.
Sites americanos e brasileiros apresentam o "pacote de cirurgia pós-parto": lipoaspiração para retirada das
gordurinhas extras, correção da vulva
e dos seios, tudo para consertar o "estrago" que a gravidez faz no corpo da
mulher. Médicos mais sensatos recomendam alguns meses de espera para
que a própria fisiologia se encarregue
de fazer boa parte do trabalho, mas
outros vendem a idéia de "aproveitar
a oportunidade do parto" e cuidar de
recuperar rapidamente a auto-estima
supostamente perdida com a "deformação" provocada pelo feto.
O vínculo amoroso imprescindível
com o bebê, a intimidade da amamentação, a importância dos primeiros
dias e semanas após o parto para incluir o bebê na família deixaram de
ser a prioridade?
Sim. Para a sociedade de consumo,
nem o corpo da mulher nem o da
criança nem o do homem são prioridades. A prioridade única e exclusiva
é o lucro. O lucro vale mais do que a
vida humana.
No depoimento de algumas mulheres motivadas a comprar o "pacote",
os argumentos giravam em torno de
garantir a permanência do desejo do
marido, preservar a boa imagem no
ambiente de trabalho, destacar a importância do corpo perfeito. E agora
perguntamos: vale a pena ficar com
um companheiro que só nos quer se
estivermos "com tudo em cima"? O
consumo também engole os valores
mais profundos do amor.
Em conversa com uma moça na faixa dos 20 anos, vimos a insegurança
de ir para a cama com o namorado
sem estar perfeitamente depilada.
Este, por sua vez, também depila os
pêlos do peito: não é à toa que cresce o
nicho das clínicas de depilação. Será
que o desejo ficou tão vulnerável à estética, tão volátil, que desaparece sem
os devidos cremes, as horas nas academias e os tratamentos de beleza para corrigir as imperfeições?
É isso que se faz com a juventude.
Ao invés de aumentar a auto-estima,
o "modelo perfeito" de homens e mulheres só faz com que esta diminua e
seja substituída por um mal-estar
subjacente que, desde a adolescência,
persegue homens e mulheres a respeito de sua imagem até o fim da vida.
Porque é impossível para o ser humano médio competir com os padrões de
beleza que vê nas revistas, nos filmes
e nas novelas de televisão. O fato se
agrava cada vez mais à medida que a
mulher vai amadurecendo.
Na maioria dos países desenvolvidos, os anos de vida útil aumentam
cada vez mais, e cada vez mais se faz
uma publicidade para a beleza amadurecida. No Brasil, as companhias de
cosméticos não conseguem furar a
barreira do preconceito da eterna juventude, a fim de criar uma "juventude" interna que não se desgasta com o
correr dos anos.
Em meio a intensas dores e desconforto de uma plástica de abdome para
tirar a barriguinha que ficou mal na
foto, uma mulher de meia-idade pensa na calça jeans e nos vestidos de malha que conseguirá usar depois de
atravessar a via-crúcis do pós-cirúrgico e das várias limitações à sua mobilidade nas primeiras semanas.
Qual o
verdadeiro sentido desse sofrimento
auto-imposto?
O amor, o desejo, a ternura e a cumplicidade podem existir entre pessoas
com corpos imperfeitos. Ao contrário
do que a mídia apregoa, quanto mais
maduros homens e mulheres, mais
profundas se tornam suas relações,
mais independentes de estereótipos e
mais prazerosas, de um prazer inabalável, se não fosse o bombardeio midiático de que a velhice é uma doença,
e não uma plenitude.
Para onde nos leva o capital/dinheiro? São inaceitáveis as marcas (e
os marcos) do tempo no corpo? É
imoral envelhecer?
O pior é que não é só o corpo que o
capital/dinheiro destrói. Ele destrói
também a capacidade de homens e
mulheres de aprofundarem a sua relação com a realidade. Destruir o corpo real e substituí-lo por um corpo de
consumo é também substituir a "realidade real" por uma "realidade de
consumo", que tende a destruir a própria espécie humana (a partir do desequilíbrio climático pelo excesso de
consumo).
ROSE MARIE MURARO, 75, escritora e editora, é patrona
do feminismo brasileiro (Lei 11.261/2005).
MARIA TEREZA MALDONADO, 59, psicóloga, é integrante da American Family Therapy Academy, com mais
de 20 livros publicados.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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