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São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2003

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BORIS FAUSTO

O barbeiro mudo e a guerra

Seu Mario não chega a ser mudo, mas economiza palavras com obsessão de usurário, enquanto exerce a profissão. Coisa estranha, pois barbeiro mudo é como pescador que ama a verdade, são-paulino negro, ou judeu anti-semita. Figuras incongruentes, mas que existem.
A discrição de seu Mario contrasta com a conversa infinita dos outros barbeiros. A seu lado, por exemplo, há um rapaz que disserta sobre futebol com uma qualidade de fazer inveja. Entende profundamente de táticas, de escalações as mais variadas, de tabelas de pontuação de qualquer campeonato. Mais ainda: se você quiser saber, por exemplo, quem é o técnico do Galtassarai, fale com ele.
Tentei uma dupla de assuntos para quebrar o silêncio, enquanto seu Mario cortava meus raríssimos cabelos: tempo e segurança. Excluí o futebol, percebendo sua absoluta indiferença pela conversa do colega ao lado.
Pareciam ser dois assuntos infalíveis. Há um enorme campo de interação, embora morno, quando se fala do tempo. Podemos ironizar o meteorologista, contar vantagem da roupa adequada que usamos apesar das previsões, sugerir que vai chover, esfriar, esquentar, ou vai ficar assim mesmo. Falar do tempo é como falar de futebol, ainda que sem paixão. Todos nós temos uma opinião, mas seu Mario não se inclui nesse "todos nós". Falhei em todas as tentativas, respondidas com um leve aceno de cabeça que, mais do que confirmar ou desmentir, parecia expressar indiferença.
Também a segurança é tema certo de conversa -nem é preciso dizer por que-, só que acalorado, ao contrário do tempo. Hesito por princípio em entrar no túnel depressivo das narrativas, em que se compete para ver quem conta a história mais escabrosa. Mas, no caso de seu Mario, abri uma exceção e me referi a uma notícia recente de jornal sobre um crime familiar envolvendo o uso de drogas, que me pareceu particularmente chamativo. Estava seguro de que seu Mario reagiria, falando da desagregação da família, da necessidade de pôr as Forças Armadas na rua, ou pelo menos dizendo algo como "onde vamos (ou fomos) parar". A resposta foi apenas o ruído um pouco mais nítido da tesoura.
Por fim, chegou um momento único. Entrei no salão há poucos dias e a guerra em curso ocupava as mentes, revelando opções. De um lado, estavam os que preferem que a guerra acabe logo e se evite, o quanto possível, dias ainda piores para o mundo. De outro, colocavam-se aqueles que queriam ver o Bush se retorcer (o verbo não era bem esse), fossem quais fossem as consequências.
Olhei para seu Mario, aproveitei uma deixa e disse: "O que o senhor acha?". Ele me olhou imperturbável e respondeu com a única frase que sempre profere, no final de um corte, espanando os últimos cabelos: "É isso aí, seu Boris".
Depois disso, como se diz em linguagem forense, nada mais disse nem lhe foi perguntado.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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