São Paulo, sábado, 07 de abril de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Câmara dos Deputados deve instituir feriado nacional no dia da canonização de frei Galvão?

NÃO

De cidadãos e de santos

ROSELI FISCHMANN

A CÂMARA não deve aprovar o projeto de lei, pois é incompreensível a decisão da Comissão de Educação do Senado de estabelecer o dia de frei Galvão por sua canonização como santo da Igreja Católica, propondo feriado nacional. A prerrogativa dessa comissão, de analisar projetos de datas comemorativas e feriados, deve-se à relevância educativa das efemérides, que devem, contudo, trazer exemplos no âmbito da esfera pública, universal, e não do privado, particular de uma religião.
Legislando de dentro do Estado laico que é o Brasil, e não a partir de instituição religiosa, comete o Senado equívoco e inconstitucionalidade que nada têm a ver com a santidade do frei Galvão. Por ser laico, o Estado não tem como se pronunciar sobre ser alguém santo ou aderir à decisão alheia, pois extrapola a esfera de sua competência, que é a dos negócios humanos na relação com o Estado, sendo impróprio que seu calendário seja invadido pelo litúrgico de alguma religião.
No afã de agradar católicos cujos respeitáveis sentimentos estão mobilizados pela visita do papa, o Senado Federal pratica gesto que se opõe ao princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, portanto, opõe-se à democracia.
Atribui a um grupo o privilégio de ser honrado de forma múltipla, considerando as datas católicas que já têm caráter de feriado nacional, às quais se acrescentaria outra, em detrimento dos diversos grupos que compõem o quadro religioso do Brasil.
Cabe a lógica das relações presentes nos discursos de ódio ("hate speech", estudado por juristas como Celso Lafer e Daniel Sarmento).
Segundo os debates, uma das razões para proibir esses discursos é que, aceitá-los, privilegiaria o direito de expressão de um grupo em detrimento do sentimento e da identidade de outro, que seria considerado, assim, oficialmente, inferior.
Ora, vale entender, similarmente, que o apreço desproporcional do Estado a um grupo determinado é também símbolo de privilégio que, ao distinguir um grupo, inferioriza os demais, sendo totalmente impróprio à democracia. Pavimenta, assim, o caminho da discriminação, por implicitamente considerar que um grupo vale mais que os outros. É, portanto, o oposto do que deve buscar a educação quanto a combater o preconceito.
O Senado perpetua, no gesto, situação inaceitável, de que todos da sociedade brasileira que não se enquadrem na denominação "católicos" -como tipo de "identidade original" da nação- sejam os "outros", em vez de sermos todos o original "nós" de uma democracia que deve ser nutrida pela laicidade do Estado.
Pois, ao fundar-se como laico desde a proclamação da República, o Brasil propõe-se a viver o pluralismo característico da democracia. Conforme Theodor Adorno, a pluralidade religiosa, étnico-racial, cultural, lingüística, quando presente na composição de um Estado, é a face visível do pluralismo político, em si presente na consciência de cada um e, por isso, invisível.
Daí a relevância educativa dos trabalhos com a pluralidade cultural, do ponto de vista da cidadania, pela evidência pedagógica do respeito e da valorização de todos. Ao restringir essa possibilidade, privilegiando um grupo, é colocado em risco o princípio democrático do pluralismo, faltando então o caráter que tem a lei de ser educadora da sociedade.
Feriado nacional, estabelecido pelo Estado laico, é para celebrar cidadãos exemplares (apenas humanos, não necessariamente santos, mas certamente justos) que contribuíram com o Estado de forma relevante, na humanamente falível esfera pública, em que o poder se estabelece como ação em concerto, conforme Arendt.
Por reconhecerem-se como humanos, compreendem os seres democráticos que se necessitam mutuamente para estabelecer o bem comum, que a nenhum pode excluir. Assim, melhor seria que o Congresso estabelecesse o Dia Nacional da Liberdade de Consciência e de Crença, celebração laica que a todos unirá, ou que finalmente aprovasse o Dia de Zumbi, de todas as gentes, como feriado nacional.


ROSELI FISCHMANN, 53, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia.

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