São Paulo, terça-feira, 07 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sobre energia

LUIZ PINGUELLI ROSA, ROBERTO D'ARAÚJO e MAURÍCIO TOLMASQUIM

Foi veiculada pela Folha, no último dia 12 de abril, a carta do ministro Pedro Parente em resposta à correspondência enviada pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva ao presidente Fernando Henrique Cardoso sobre a crise de energia elétrica e a medida provisória 14, que ressarce as empresas elétricas inadimplentes às custas do aumento das tarifas.
O tom do texto não corresponde à cortesia de um encontro do ministro com membros do grupo de trabalho de energia do Instituto da Cidadania. Surpreende o tom agressivo, quando se considera que o assunto da carta é a crise de energia elétrica, que tantos males causou e ainda causará à população brasileira. Ela foi gestada sob a administração da qual o ministro faz parte e, portanto, seria desejável, no mínimo, um tom mais reflexivo em seu texto.
O fato de o ministro qualificar como "descortesia" a divulgação da questão na imprensa evidencia uma contestável concepção no trato de assuntos de interesse público que julgamos equivocada. Na correspondência, o ministro ironicamente recomenda ao candidato a leitura do "Diário Oficial". Também temos indicações de leitura de "inestimável importância" a recomendar ao ministro, principalmente cartas de leitores e manifestações de órgãos de defesa do consumidor nos principais jornais brasileiros, que repudiam as medidas adotadas na medida provisória 14.
Também surpreende sua atenção aos números que traduzem os lucros e as margens líquidas das empresas distribuidoras privadas. Certamente não teve o mesmo cuidado com "margens líquidas" dos consumidores, que, pressionados por aumentos recordes de tarifa, têm cada vez menos "margens" e estão cada vez menos "líquidos". É dever do administrador público cuidar dos interesses da população do seu país, acima dos interesses de grandes grupos econômicos.
O ministro esclarece na carta que o bom desempenho financeiro das empresas distribuidoras, a maioria controlada por grupos estrangeiros riquíssimas, deu-se após os recursos do contribuinte serem transferidos a elas pelo governo. Ora, é estranho que com o dinheiro público essas empresas tenham saído do prejuízo, alegado pelo ministro, para terem lucratividade bastante significativa, se os recursos eram para cobrir um déficit, e não para gerar lucros.
Lamentamos que o ministro tenha se constrangido com a sua pressuposição, errada, de que o candidato do PT veja a concessão de serviço público como um regime de livre mercado. Na verdade, foi o governo que passou para o regime de mercado a geração elétrica, antes no regime de concessão, abolindo a obrigação de as geradoras investirem e criando a pré-condição para a crise. Surpreende também sua acusação simplista de que "ignora a disciplina jurídica do regime de tarifas". O ministro mostra, assim, seu desapreço pelas controvérsias que essa matéria encerra internacionalmente, imaginando sua visão equivocada como única e incontestável.


Foi o governo que passou para o regime de mercado a geração elétrica, abolindo a obrigação de as geradoras investirem


Não pretendemos dar lições sobre o assunto, apenas lembrar que os contratos de concessão definem como obrigações das distribuidoras o atendimento qualificado e contínuo da sua demanda atual e futura. Lembramos que, desde 1995, pela lei 9.074, a responsabilidade da expansão, necessária ao cumprimento dessa cláusula, é de todos os agentes do mercado, distribuidoras inclusas.
Os contratos assinados com as geradoras, que, por erro de avaliação e falta de investimentos, não puderam ser cumpridos por superavaliar a disponibilidade de energia, não isentam de culpa as distribuidoras, pois certamente a competência técnica para analisar os riscos desses entendimentos é um pressuposto para uma empresa exercer a concessão de um serviço público de tal importância. Certamente não são os consumidores os causadores de tal descompasso.
Além disso, essas empresas são signatárias de relatórios do Operador Nacional do Sistema que, desde 2000, alertavam que "a demanda de energia elétrica vinha sendo atendida com energia interruptível" (relatório de abril de 2000), o que já caracteriza uma quebra de contrato com o consumidor.
Evidentemente sabemos da familiaridade do ministro com conceitos tão tradicionais em qualquer serviço de energia elétrica digno de credibilidade. Pedimos licença para interpretar que sua pouca atenção por essas questões esteja associada às amarras do modelo mercantil no setor elétrico, equivocadamente adotado no Brasil, e do qual o governo não consegue se libertar, apesar dos evidentes fracassos.
O restante da correspondência do ministro, uma vez qualificados os pontos cruciais acima mencionados, simplesmente advoga a favor do interesse dessas empresas. Comentá-los em nada resultaria, tais nossas diferenças.
Podemos entretanto adicionar ainda uma questão: por que foram contratadas as usinas emergenciais a peso de ouro, se, sem elas, segundo o governo, o risco de déficit ficou dentro do previsto, após o fim da seca e com algumas termelétricas sendo ultimadas?
Por fim, admitindo sua hipótese de que o candidato do PT venha a ocupar a Presidência da República, certamente estamos cientes das dificuldades nessa área energética, tal o desmonte realizado. Entretanto não teríamos tanta certeza de que as críticas são todas "fáceis" e advindas de "oportunistas de plantão".


Luiz Pinguelli Rosa, 60, físico, é diretor da Coppe-UFRJ (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Roberto Pereira d'Araújo, 54, engenheiro, é pesquisador do Instituto Virtual de Mudanças Globais da Coppe. Maurício Tiomno Tolmasquim, 42, engenheiro e economista, é coordenador do Programa de Planejamento Energético da Coppe.



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