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TENDÊNCIAS/DEBATES
A propriedade ou a vida
FÁBIO KONDER COMPARATO
A ocasião é propícia a uma reflexão sobre o direito de propriedade, que constitui um dos pilares da chamada civilização moderna
EM SEU discurso de investidura,
o novo presidente do Supremo
Tribunal Federal decidiu brandir a espada da Justiça contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. Grande honra para o MST
atrair assim, sobre si, o olhar venerável da nossa mais alta magistratura. É
sinal de que temos, enfim, como
agente político um grupo que contrasta vivamente com a mediocridade
timorata e balofa dos nossos partidos.
A ocasião é propícia a uma reflexão
sobre o direito de propriedade, que
constitui um dos pilares da chamada
civilização moderna.
Até o século 18, nenhum sistema jurídico conheceu um direito individual
tão completo e absoluto sobre coisas.
No direito romano, havia três tipos de
"dominium", com diferente conteúdo: o quiritário, o provincial e o pretoriano. Na Idade Média, proliferaram,
em toda a Europa ocidental, as mais
variadas espécies de direitos sobre
coisas, correspondentes ao esfacelamento do poder político, típico do
feudalismo.
A era moderna principia, nesse particular, com a promulgação do Código
Napoleão, em 1804, verdadeira "Magna Carta" da burguesia. Em seu artigo
544, fixou-se a célebre definição: "A
propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta, contanto que não se faça dela um
uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos". Portanto, no silêncio da
lei ou do regulamento, o proprietário
pode usar e abusar do seu direito à
vontade.
Aliás, todo o Código Civil francês é
estruturado na oposição entre pessoas e propriedade (no singular). Se o
livro primeiro trata das pessoas, os
dois outros livros cuidam somente da
propriedade: "Das diferentes modificações da propriedade" e "Das diferentes maneiras pelas quais se adquire a propriedade".
Em oposição a esse absolutismo da
propriedade privada, levantou-se o
movimento socialista, de todos os
matizes. Pregou-se a abolição total
desse direito, como medida de estrita
justiça. Ora, nada mais justifica manter essa dicotomia anacrônica: propriedade absoluta ou ausência de
propriedade.
A propriedade ainda deve hoje ser
reconhecida como direito fundamental, quando necessária à manutenção
de uma vida individual ou familiar
dignas. Fora dessa hipótese bem demarcada, estamos diante de um direito ordinário, que não goza das garantias fundamentais previstas na Constituição. Mas, em qualquer hipótese,
o direito de propriedade não deve ser
confundido com o poder de controle
empresarial, que é um direito sobre
pessoas, e não só sobre coisas.
Perante um direito fundamental de
propriedade, o juiz deve, na desapropriação, fixar uma indenização que
corresponda à totalidade dos danos
sofridos pelo expropriado; o que pode
superar o valor venal do bem. No caso
da propriedade ordinária, ao contrário, a indenização não deve exceder o
valor correspondente à efetiva importância da coisa no patrimônio do
proprietário, o que pode equivaler a
muito menos que o valor venal; pois o
interesse público prevalece sempre
sobre o interesse privado.
Além disso, a regra constitucional
de que "a propriedade atenderá a sua
função social" (artigo 5º, inciso
XXIII) influi decisivamente sobre a
proteção desse direito. Em caso de
descumprimento do preceito, o juiz
não pode, sem violar frontalmente a
Constituição, conceder mandado liminar de manutenção ou reintegração de posse ao proprietário.
É preciso, porém, ir mais além. Urge reconhecer, num regime republicano, que certos bens essenciais à vida digna de todo o povo não podem
ser objeto de ilimitada apropriação
privada. É exatamente o caso -e de
modo cada vez mais claro com a exploração crescente dos biocombustíveis, em detrimento do direito à alimentação- das terras agrícolas.
No quadro da reforma agrária, por
exemplo, elas deveriam ser objeto de
um direito de uso (Código Civil, artigos 1.225 e seguintes), concedido a lavradores ou sociedades cooperativas;
direito que, em todos os casos, haveria de ser exercido segundo as diretrizes da política agrícola nacional.
Por todas essas razões, bendito seja
o MST, que continua a suscitar um salutar desassossego no coração de nossos grandes proprietários agrícolas!
FÁBIO KONDER COMPARATO, 71, é professor titular
aposentado da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre
outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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