São Paulo, Segunda-feira, 07 de Junho de 1999
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Em nome da pizza

BORIS FAUSTO

Tenho um irmão que foi viver nos Estados Unidos há quase 40 anos. Cada vez que vem a São Paulo, reclama contra a americanização grotesca da cidade, visível nos anúncios, na linguagem e em muitas coisas mais. Quando tenta reencontrar a paisagem de sua memória, não consegue localizar o pasteleiro chinês, na entrada de um boteco da praça Antônio Prado, ou o grande bar e café cujo forte era o caldo de cana, na esquina da rua Barão de Itapetininga com a praça da República.
Diante das muitas lacunas, tento fazer sociologia elementar, convencendo meu irmão da inevitabilidade do processo de concentração do comércio e dos serviços destinados a um público amplo. Trato também de demonstrar-lhe o lado positivo desse processo, pois a economia de escala resulta em preços mais baixos e em uma oferta diversificada de bens. Mas não consigo convencê-lo com esse tipo de argumento, mesmo porque seu problema, de natureza gustativa e afetiva, não envolve cálculos racionais.
Por fim, descobri um caminho, quando tive a idéia de levá-lo a uma feira livre. Ele se viu diante da oferta rumorosa de pastéis e de caldo de cana. Aspirou e deglutiu o ambiente, encantando-se tanto com o processo de produção quanto com o produto. Acompanhou o preparo do pastel, mergulhado em óleo, ganhando consistência pelas mãos hábeis de um pasteleiro nissei; deixou-se hipnotizar pelo guincho e o lento movimento das rodas de uma engenhoca que triturava os feixes de cana, de onde brotava o verde líquido.
Na última semana, ao passar diante de um McDonald's, pensei em meu irmão, ou melhor, irmanei-me com ele, com o perdão do pleonasmo. Dei de frente com um mastro enfarpelado com as cores da bandeira italiana onde se lia a frase: "Mangia che ti fa bene". Tudo com o objetivo de chamar a atenção para cartazes anunciando a venda do "McBello" ou do "McBuono". Que diabo seria isso? Pois trata-se de hambúrgueres que se pretendem italianizados, graças à presença de um suposto molho peninsular.
É compreensível a atração que os hambúrgueres, o catchup, as batatas fritas padronizadas, o ambiente pasteurizado, onde se movem meninas de uniforme, exercem sobre o grande público e, sobretudo, sobre as crianças.
Mas a minoria não pode renunciar ao direito de navegar contra a corrente. De minha parte, pensei em protestar contra essa caricatura de comida italiana. Desisti por duas razões: de um lado, o protesto poderia ser tomado como irritação quixotesca de um velho paulista; de outro, em nome do pluralismo, alguém poderia argumentar que as grandes redes, tão sem graça, acabaram fazendo parte da fisionomia alimentar de São Paulo.
Fiz uma outra escolha e até agradeci, por contraste, às redes de alimentação. A cascata de mussarela da pizza margherita, derramando-se à minha frente, nunca me pareceu tão bela. Se soubesse rezar, teria cultuado esse produto brilhante da cozinha ítalo-paulistana, que, apesar dos pesares, continua bem viva.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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