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TENDÊNCIAS/DEBATES
É justificável que pessoas com diploma de ensino
superior tenham direito a prisão especial?
NÃO
Preso de fino trato
MIGUEL REALE JÚNIOR
N
AS ORDENAÇÕES Filipinas,
cujo livro V constituiu o diploma penal vigente no Brasil de
1647 a 1830, diferenciava-se a pena a
ser aplicada consoante a condição do
acusado. Pelas ordenações, caso um
homem dormisse com uma mulher
casada, ele sofreria pena de morte se o
marido traído fosse de condição superior à sua, assim o peão que dormisse
com a mulher do nobre. Se o nobre,
no entanto, dormisse com a mulher
do peão, sofreria a pena de morte apenas por decisão do rei.
A Constituição de 1824, art. 179, relativo aos direitos civis e políticos, estabelecia, no inciso XX, que ficava
abolida a pena de açoites. No entanto,
o art. 60 do Código Criminal do Império, de 1830, cominava essa pena aos
escravos.
Dois pesos e duas medidas que até
hoje perduram a perpetuar as desigualdades perante a lei. O Código de
Processo Penal, no art. 295, traz o
elenco de pessoas que têm direito, na
hipótese de prisão anterior à condenação transitada em julgado -como
prisão em flagrante, temporária ou
preventiva-, a não serem recolhidas
à prisão comum, mas a quartel ou estabelecimento separado.
Recebem esse privilégio, além de
ministros, governadores, senadores,
deputados, também os magistrados,
os advogados, os membros do Ministério Público, os dirigentes sindicais,
os jornalistas profissionais, os jurados, os comerciantes e os diplomados
por faculdades superiores.
Reafirma-se, dessa forma, a natureza piramidal de nossa sociedade, estruturada em pavimentos, com benefícios desfrutados apenas por causa
da categoria social, do status.
Assim, mesmo que caiba a prisão
preventiva por razões de extrema necessidade, como perigo de fuga do
país ou de destruição de provas, bem
como por estar a coagir testemunhas,
o réu portador de diploma de curso
superior tem direito a não se misturar
com os demais presos em prisão comum, beneficiado com prisão especial e transporte em separado.
No caso do portador de diploma de
curso superior, verifica-se o domínio
social do dono de capital cultural, tão
ou mais efetivo que o econômico, como destaca Pierre Bourdieu, capital
cultural consistente em conhecimentos adquiridos, no modo de falar e de
se portar, nos títulos, em ser chamado
de "doutor". No Brasil, integra também esse capital o direito de ficar preso em sala especial.
As estruturas sociais, segundo
Bourdieu, são decalcadas nas estruturas mentais, de modo que as estruturas sociais objetivas passam a fazer
parte da subjetividade das pessoas, a
ponto de alguns juristas entenderem
natural a diferenciação de tratamento no cumprimento da prisão segundo a condição social do preso.
Dito isso, não espantam os argumentos esgrimidos em favor do privilégio. Primeiro, o argumento de ser a
prisão anterior à condenação não merece atenção -a situação vale para o
diplomado e para o semi-analfabeto.
Depois, se valem de eufemismos.
Dizem não se tratar de privilégio, mas
de homenagem em razão das funções
desempenhadas no cenário jurídico-político, inclusive o grau de escolaridade. Seria, argumentam, uma atenção a certas pessoas, considerando a
relevância do cargo ou o seu destaque
social, a justificar a conveniência de
que a prisão, por ser anterior à condenação, não se dê no meio da massa
carcerária, em estabelecimentos prisionais deletérios.
Para os defensores do privilégio, tudo é válido, até o diploma universitário do acusado, para redução da população carcerária em meio nocivo,
mesmo que seja discriminatório.
A prisão, alega-se, não foi feita para
pessoas de categoria social e cultural,
para as quais o encarceramento é
muito mais penoso em comparação
com o sentido pelo homem tosco.
"Mutatis mutandis", assim se justificou escravizar o negro e não o índio:
infligir o sofrimento do trabalho escravo ao africano não era pecado, pois
sofria menos que o aborígine. E assim
se legitimou a escravatura do negro. E
assim se legitima o inferno prisional.
Dessa forma, instaura-se o privilégio: a prisão especial para quem é de
fino trato, e a prisão comum para o
proletário (termo antiquado) ou o ignorante que não conseguiu se formar
em uma das 1.034 faculdades de direito ou em uma das milhares de outras
disciplinas espalhadas pelo Brasil.
MIGUEL REALE JÚNIOR , 63, advogado, é professor titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário da Segurança Pública (governo Montoro) e da Administração (governo Covas) do Estado de São Paulo e ministro da Justiça (governo Fernando Henrique).
miguel@realeadvogados.com.br
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