São Paulo, segunda-feira, 07 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O caso Maria da Penha

BEATRIZ AFFONSO, MARIA DA PENHA e VALÉRIA PANDJIARJIAN


Acordei com um forte estrondo no quarto. Abri os olhos, tentei me mexer, mas não consegui: "Meu Deus, o Marco me deu um tiro"

"ACORDEI DE repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos.
Não vi ninguém. Tentei me mexer, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e um só pensamento me ocorreu: "Meu Deus, o Marco me matou com um tiro". Um gosto estranho de metal se fez sentir forte na minha boca enquanto um borbulhamento nas minhas costas me deixou perplexa. Isso me fez permanecer com os olhos fechados, me fingindo de morta, pois temia que Marco me desse um segundo tiro."
Em 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de homicídio por seu então marido e pai de suas três filhas, dentro de sua casa, em Fortaleza. O agressor, Marco Antonio Heredia Viveiros, colombiano naturalizado brasileiro, economista, atirou nas suas costas enquanto ela dormia, causando-lhe paraplegia irreversível.
Ele alegou que a ação foi praticada por ladrões que fugiram, mas a versão não se sustentou -sobretudo após nova tentativa de assassinato, agora por meio de eletrochoque no banho. Começa então a luta por justiça no âmbito nacional, caminho repleto de obstáculos que resultaram em novas violações.
Passados 25 anos, o Estado brasileiro finalmente cumpre com a quase totalidade das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao efetivar o pagamento, pelo governo do Ceará, da indenização pecuniária, que ocorrerá em meio a um ato público.
O evento promete explicitar o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelas graves violações de direitos humanos, promovendo, assim, a reparação simbólica e material devida à vítima. E ainda, não menos importante, a adesão do Estado do Ceará ao Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que, com a lei federal 11.340/06 (Lei Maria da Penha), dará cumprimento às medidas de reparação vinculadas à não-repetição de casos semelhantes.
É oportuno resgatar o histórico desse processo para melhor compreender os passos dados, bem como aqueles ainda pendentes.
Em 1998, mais de 15 anos após o crime e apesar de haver duas condenações pelo Tribunal do Júri do Ceará, ainda não havia decisão definitiva no processo e o agressor permanecia em liberdade, razão pela qual Cejil, Cladem e Maria da Penha enviaram o caso à comissão interamericana. As irregularidades no processo e a demora injustificada determinaram a violação pelo Estado brasileiro das normas internacionais de direitos humanos, em especial da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção de Belém do Pará.
Ficou comprovado que o caso não era um fato isolado. Ao contrário, seguia um padrão sistemático de negação de acesso à Justiça para mulheres vítimas de violência doméstica e impunidade para os agressores no país.
Em 2001, a comissão interamericana declarou o Estado brasileiro responsável por omissão e negligência, somadas à tolerância em relação à violência doméstica contra mulheres.
Em 2002, foram precisas novas intervenções na comissão interamericana para que o processo criminal fosse concluído no âmbito nacional, e o agressor, finalmente preso, pouco antes de o crime prescrever. Apesar de condenado e foragido da Justiça, ele dava aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
O passo seguinte foi fomentar a pressão nacional e internacional para que o Estado desse continuidade ao cumprimento das recomendações.
Nesse caso, resultou favorável a ampliação, para além das partes envolvidas, da participação de outras organizações nacionais que atuam na defesa dos direitos das mulheres.
A Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, é a maior expressão dessa participação.
Resultado da luta do movimento feminista e de mulheres, o processo de sua aprovação representa uma boa prática de colaboração entre a sociedade civil e o Estado. Hoje, a efetivação da lei está na agenda pública nacional e representa um grande desafio para a sociedade brasileira.
Finalmente, importa reconhecer e parabenizar o Estado brasileiro (especialmente a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o Ministério das Relações Exteriores e o governo do Ceará) pelo cumprimento dessas medidas, que contemplam não só Maria da Penha mas todas as mulheres do país.
Aguardamos, ainda, para o cumprimento de todas as medidas, o resultado da denúncia no Conselho Nacional de Justiça para apurar a responsabilidade sobre irregularidades e atrasos na demora injustificada do processamento do agressor na Justiça interna.


BEATRIZ AFFONSO , 40, cientista política, é diretora do programa para o Brasil do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil).
MARIA DA PENHA , 63, farmacêutica bioquímica pela UFCE e mestre em parasitologia pela USP, é colaboradora de honra da Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza (CE).
VALÉRIA PANDJIARJIAN , 39, advogada, é responsável pelo programa de litígio internacional do Cladem (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).

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