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OTAVIO FRIAS FILHO
Erramos
Aquele que é considerado pela
maioria dos jornalistas o melhor
jornal do mundo -o "New York Times"- resolveu adotar um ombudsman, profissional contratado para criticar o próprio jornal e defender eventuais vítimas de erros ou abusos. Essa
é a providência mais vistosa num
elenco de medidas voltadas a sanar
uma grave crise de credibilidade.
Como o leitor se recorda, essa crise
teve origem quando se revelou que
um repórter do jornal introduzia invencionices destinadas a apimentar o
texto e atestar a presença do autor em
locais onde ele não estivera. O jornal
publicou três páginas recheadas com
retificações, mas, ainda assim, o volume dos protestos forçou a substituição
do comando editorial do diário.
Inadmissíveis como eram, as falsidades do repórter Jayson Blair não deturparam fatos importantes nem prejudicaram terceiros. Numa sociedade
puritana, intransigente com pequenas
mentiras (vide os casos Nixon e Clinton), a reação foi avassaladora. O episódio deu à direita americana razão
para atacar o principal veículo do pensamento "progressista" do país.
Por paradoxal que seja, o que propiciou as fraudes continuamente cometidas parece ter sido a própria aura de
qualidade que cerca o jornal, como se
ele fosse infalível. A confiança depositada nos relatos publicados e a noção
de que um jornal como o "Times" não
erra devem ter sido suficientes para
dissuadir testemunhas em condições
de desmentir o repórter.
Uma visão menos ingênua não demora a demonstrar as limitações do
relato jornalístico. Uma quantidade
enorme de fatos é resumida às pressas
por um grupo de pessoas que, dada a
natureza da profissão, quase nunca
são especialistas nos assuntos de que
tratam. Pior: são fatos recolhidos a
quente, quando seus contornos e implicações ainda são obscuros.
Pior ainda: a maioria dos fatos ocorridos fica fora do relato jornalístico,
que deve selecionar apenas os mais
"relevantes". E um mesmo fato pode
ser relatado de diferentes maneiras,
que podem ser muito discrepantes entre si, mesmo não sendo falsas. Se há
erros na "Encyclopaedia Britannica",
se cada verbete ali admitiria enfoque
diverso, que dizer então dos jornais?
Nada disso deveria servir de consolo, muito menos de desculpa para o
conformismo. A objetividade jornalística é uma miragem, mas há relatos
mais objetivos do que outros. A infalibilidade jornalística é mera arrogância
(ambos predicados atribuídos ao
"New York Times"), mas corrigir erros e dar visibilidade a diferentes versões deveria ser dever corriqueiro.
A mídia exerce influência crescente
e seu poder não pode ser controlado,
sob risco de comprometer a liberdade
de expressão e o direito à informação.
Somente um sistema interno e visível
de freios e contrapesos (do qual o ombudsman é uma peça valiosa) pode
coibir abusos. E banhos diários de humildade diante da precariedade de
qualquer relato expresso em palavras.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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