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São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Erramos

Aquele que é considerado pela maioria dos jornalistas o melhor jornal do mundo -o "New York Times"- resolveu adotar um ombudsman, profissional contratado para criticar o próprio jornal e defender eventuais vítimas de erros ou abusos. Essa é a providência mais vistosa num elenco de medidas voltadas a sanar uma grave crise de credibilidade.
Como o leitor se recorda, essa crise teve origem quando se revelou que um repórter do jornal introduzia invencionices destinadas a apimentar o texto e atestar a presença do autor em locais onde ele não estivera. O jornal publicou três páginas recheadas com retificações, mas, ainda assim, o volume dos protestos forçou a substituição do comando editorial do diário.
Inadmissíveis como eram, as falsidades do repórter Jayson Blair não deturparam fatos importantes nem prejudicaram terceiros. Numa sociedade puritana, intransigente com pequenas mentiras (vide os casos Nixon e Clinton), a reação foi avassaladora. O episódio deu à direita americana razão para atacar o principal veículo do pensamento "progressista" do país.
Por paradoxal que seja, o que propiciou as fraudes continuamente cometidas parece ter sido a própria aura de qualidade que cerca o jornal, como se ele fosse infalível. A confiança depositada nos relatos publicados e a noção de que um jornal como o "Times" não erra devem ter sido suficientes para dissuadir testemunhas em condições de desmentir o repórter.
Uma visão menos ingênua não demora a demonstrar as limitações do relato jornalístico. Uma quantidade enorme de fatos é resumida às pressas por um grupo de pessoas que, dada a natureza da profissão, quase nunca são especialistas nos assuntos de que tratam. Pior: são fatos recolhidos a quente, quando seus contornos e implicações ainda são obscuros.
Pior ainda: a maioria dos fatos ocorridos fica fora do relato jornalístico, que deve selecionar apenas os mais "relevantes". E um mesmo fato pode ser relatado de diferentes maneiras, que podem ser muito discrepantes entre si, mesmo não sendo falsas. Se há erros na "Encyclopaedia Britannica", se cada verbete ali admitiria enfoque diverso, que dizer então dos jornais?
Nada disso deveria servir de consolo, muito menos de desculpa para o conformismo. A objetividade jornalística é uma miragem, mas há relatos mais objetivos do que outros. A infalibilidade jornalística é mera arrogância (ambos predicados atribuídos ao "New York Times"), mas corrigir erros e dar visibilidade a diferentes versões deveria ser dever corriqueiro.
A mídia exerce influência crescente e seu poder não pode ser controlado, sob risco de comprometer a liberdade de expressão e o direito à informação. Somente um sistema interno e visível de freios e contrapesos (do qual o ombudsman é uma peça valiosa) pode coibir abusos. E banhos diários de humildade diante da precariedade de qualquer relato expresso em palavras.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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