São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por um novo consenso sobre o aborto

ANÍBAL FAÚNDES


Ao redor do mundo, as estatísticas demonstram não haver correlação entre maior severidade penal e menor número de abortos


Q UANDO O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, teve a coragem de manifestar que era necessário rediscutir a legislação sobre o aborto, surgiram ferozes críticos que previram uma epidemia dessa prática em caso de mudança na lei. Essa suposição, que parece partir da crença de que não há abortos sendo praticados no Brasil, não encontra eco na realidade -haja vista a existência no país de extensa indústria clandestina responsável por cerca de 1 milhão de abortamentos e algo entre 300 e 700 mortes de mulheres a cada ano, de acordo com as estimativas mais bem fundamentadas.
O ministro tem indiscutível mérito ao reativar a discussão, pois esse é um problema grave tanto do ponto de vista da saúde pública quanto do ponto de vista da mulher que o realiza. Por isso mesmo, a imensa maioria das pessoas é contra o aborto, incluindo a maior parte das mulheres que o realizam. A conclusão lógica é que é preciso fazer todo o esforço possível para que ninguém tenha que passar por essa difícil experiência.
Não duvidamos da sinceridade dos que acreditam que, se opondo a uma maior liberalidade da lei, contribuem para que haja menos abortos. Ao redor do mundo, porém, as estatísticas demonstram não haver correlação entre maior severidade penal e menor número de abortos praticados. Pelo contrário: países com leis mais restritivas, como a maioria dos da América Latina, têm muito mais abortos por cada mil mulheres em idade fértil do que países com leis mais liberais, como os da Europa ocidental. Na Holanda e na Alemanha, por exemplo, em cada grupo de 1.000 mulheres entre dez e 49 anos de idade, 7 abortam anualmente -contra 35 a 50 em países latino-americanos, como Colômbia, Brasil e Chile.
Isso sugere que não é a maior ou menor liberalidade das leis que irá determinar a opção de uma mulher pelo aborto. O que a experiência desses países ensina é que, para conseguir baixas taxas de aborto, é preciso educação em sexualidade desde a infância e maior igualdade de poder entre mulheres e homens, além de amplo conhecimento e acesso a todos os métodos eficazes de contracepção.
É baseado na experiência desses países de baixos índices de interrupção da gravidez que o governo brasileiro vem dando, corretamente, nova ênfase ao planejamento familiar, para colocá-lo acessível a jovens, pessoas de menores recursos, moradores de áreas rurais e outros grupos marginalizados da sociedade. Isso é acompanhado por novo estímulo à educação em sexualidade responsável, que ensine aos jovens o respeito mútuo -mas que também informe como evitar a gestação não desejada e garanta acesso aos métodos anticoncepcionais, para reduzir a gravidez e o aborto entre adolescentes. Ao mesmo tempo, é preciso propor medidas que protejam a grávida que deseja ter um filho, mas que aborta por impossibilidades econômicas e sociais (desemprego, abandono pelo parceiro, entre outras situações comuns pelo país afora), garantindo a ela alguma forma de proteção social.
Nas palavras da ministra Nilcéa Freire, um dia antes da chegada do papa Bento 16 ao Brasil: "Ninguém é a favor do aborto. A pergunta é: a mulher deve ser presa? Deve morrer?". Criminalizar a mulher que aborta não seria tão grave se não fosse, além de ineficaz, injusto e perigoso. Injusto, pois afeta exclusivamente as mulheres com menos educação e meios econômicos, que engravidam porque não têm poder de controlar sua vida sexual e não têm acesso a informação nem a serviços de anticoncepção. E perigoso, sobretudo para essas mulheres, já que as de maior poder aquisitivo têm acesso a clínicas que fazem abortos seguros (e caros) e jamais são acusadas ou condenadas.
Apesar de o aborto não ser um evento desejável, a maioria das pessoas que viveram a experiência de uma gravidez não desejada acaba aceitando que, nesse caso, para elas absolutamente excepcional, o aborto é moralmente aceitável. O que temos dificuldade de entender é que, para cada mulher ou casal, as circunstâncias que levam ao aborto são também absolutamente excepcionais e, nesse contexto, moralmente justificáveis.
Uma sociedade pluralista e democrática aceita a liberdade dos indivíduos para fazer valer seus atos pessoais dentro de limites dados por regras gerais de conduta comumente aceitas e que permitem, em última análise, a convivência em sociedade. Para reduzir as gestações não desejadas e os abortos, não faz sentido continuar a manter leis tão restritivas como as do Código Penal, que é de 1940. É hora de buscarmos um novo consenso sobre essa dramática questão e traduzi-lo em regulamentações condizentes com nosso tempo.

ANÍBAL FAÚNDES, 76, é professor titular aposentado de obstetrícia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e presidente do Grupo de Trabalho sobre Aborto Inseguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia. É autor do livro "O Drama do Aborto".

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