São Paulo, sexta, 7 de agosto de 1998

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A pesquisa e seus falsos dilemas



É cada vez mais difícil e estéril o exercício de determinar as fronteiras entre pesquisa básica e pesquisa aplicada
JOSÉ FERNANDO PEREZ

A necessária e oportuna reflexão sobre o financiamento da pesquisa científica e tecnológica no Brasil talvez possa ser enriquecida com a análise de uma experiência recente. Exemplos extraídos da prática costumam ser guias indispensáveis e confiáveis na formulação e na implementação de políticas.
Trata-se da brevíssima história do Projeto Genoma, lançado há alguns meses, que deverá identificar todo o código genético da bactéria Xylella fastidiosa, responsável pela "praga do amarelinho", que ataca 34% da cultura de laranja do Estado de São Paulo.
A semente da idéia foi lançada em maio de 1997, quando expressivas lideranças da biologia molecular concluíram que um projeto dessa natureza poderia ser poderosa alavanca para o desenvolvimento da nossa biotecnologia.
Essa é uma área do conhecimento na qual o Brasil vem tendo taxas de crescimento que, embora expressivas, são menores do que a média mundial. Isso aumenta nossa distância em relação aos países desenvolvidos numa área reconhecidamente estratégica.
O projeto tem como grande objetivo inverter essa tendência, especialmente inaceitável em um país como o nosso, em que a biotecnologia vegetal terá de dar uma grande contribuição para o aumento da produtividade e da competitividade de nossa agricultura.
Sem um aumento significativo da nossa competência em genética molecular, não estaremos aptos a usar as informações geradas pelo Projeto Genoma Humano; tampouco conseguiremos explorar adequadamente nossa riquíssima biodiversidade.
A arquitetura do projeto responde às suas finalidades: obter informação potencialmente relevante para o controle da praga e, ao mesmo tempo, disseminar as técnicas de sequenciamento genético, essenciais para a moderna biotecnologia em todas as suas vertentes.
Por isso, a estratégia de sequenciamento adotada não foi a mais barata nem a mais rápida. Se essas fossem as considerações mais importantes, a tarefa poderia ser encomendada a laboratórios comerciais no exterior. Mas, assim obtida, a informação seria estéril. Não basta identificar os genes: há que determinar suas funções biológicas, meta que demanda a formação de uma massa crítica de pesquisadores, com domínio da metodologia envolvida.
Decidiu-se, então, pela formação de uma rede de laboratórios. Estes, treinados por dois laboratórios centrais e ligados a um centro de bioinformática, compartilham a responsabilidade de obter, cada um deles, um pedaço dos cerca de 2 milhões de informações contidas no DNA da bactéria.
O anúncio do projeto suscitou uma resposta surpreendente: em menos de um mês, cem laboratórios declararam-se dispostos a participar da rede. Uma comissão internacional selecionou 30 deles, que se espalham pelo Estado e pelas mais variadas instituições de pesquisa, públicas ou particulares, dotando o projeto de uma dimensão cooperativa sem precedentes na história da pesquisa científica brasileira.
Além de seu interesse científico, por ser o primeiro genoma de um patógeno vegetal, o projeto adquire uma importância especial ao propiciar algo pouco frequente no sistema brasileiro de pesquisa: a aproximação entre conhecimento científico e aplicações práticas, de importância econômica.
Essa é uma das características da pesquisa moderna: a rápida diminuição da distância conceitual e temporal entre a geração do conhecimento e sua aplicação prática, que torna cada vez mais difícil e estéril o exercício de determinar as fronteiras entre a pesquisa básica e a pesquisa aplicada.
Nesse aspecto, é paradigmática a parceria com o Fundecitrus, entidade que congrega citricultores e a indústria do suco e influenciou decisivamente a escolha do organismo a ser sequenciado, financiando parte do projeto.
As características de pesquisa induzida e cooperativa, bem como a parceria com o setor produtivo, foram elementos essenciais do projeto. Mas não devemos, apressadamente, concluir que esses seriam sempre os ingredientes da receita ideal para agências de fomento.
Basta verificar que todas as principais lideranças científicas envolvidas com o desenho e a execução do projeto trabalham há anos em projetos espontaneamente gerados de pesquisa básica, realizados por seus próprios grupos. Como fruto dessas atividades, produziram e compartilharam conhecimento; hoje, são internacionalmente reconhecidas por sua competência.
Só a sinergia de sua atuação tornou possível conceber e viabilizar em pouquíssimo tempo o Projeto Genoma. Ele é, portanto, produto de uma competência que vem sendo instalada nos últimos 30 anos no sistema de pesquisa do país. Até a rapidíssima mobilização de assessoria internacional só foi possível graças à rede de conexões internacionais de que dispomos atualmente.
Também nos complexos meandros do financiamento da pesquisa convém reafirmar o princípio de Isaac Newton de que "exemplos não ensinam menos do que orientam". O exemplo escolhido demonstra que os tradicionais dilemas da pesquisa (básica ou aplicada, espontânea ou induzida, individual ou cooperativa) tornaram-se anacrônicos. As opções que sugerem não esgotam o universo de possibilidades nem se excluem mutuamente.
Somos também levados a reconhecer que o importante é, sem nos fixarmos a fórmulas rígidas, permanecermos atentos às diversas alternativas, reconhecendo necessidades e oportunidades, adotando as formas de organização e operação que mostrem ser as mais adequadas e promissoras.

José Fernando Perez, 53, é professor do Instituto de Física da USP (Universidade de São Paulo) e diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).



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