São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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O Hino Nacional

BORIS FAUSTO

Na data da Independência, é oportuno lembrar um dos símbolos mais expressivos de nossos sentimentos: o Hino Nacional. Refiro-me a sentimentos e não à identidade porque o hino desperta sensações diversas nos diferentes grupos sociais, variando também em função da época. Sob o último aspecto, tudo indica, como lembrou o ministro Weffort (pág. 1-3, Opinião, 23/8), que os períodos democráticos tendem a gerar maior identificação, em contraste com os períodos autoritários de nossa história.
Na esteira de uma entrevista anterior do ministro (pág. 1-4, Brasil, 21/8), indago se o hino seria ou não intocável. Não falo da apresentação vocal, que ele propõe seja modificada, liberando-se, na execução, a tonalidade, bem como o arranjo. Vou além, falando da letra.
Um pouco da história do hino nacional nos mostra que letra e música não nasceram juntas. O hino, que data da Independência, só ganhou letra em 1831, recebendo o título de "Hino de 7 de Abril", ao se celebrar a abdicação de dom Pedro 1º. A letra mudou por ocasião da coroação de d. Pedro 2º e uma vez mais neste século, quando, em 1922, os versos de Osório Duque Estrada foram oficializados. Aliás, após a Proclamação da República, ficou patente a popularidade do hino, ao se realizar um concurso para sua substituição. Por pressão popular, com aquiescência do marechal Deodoro, a composição vencedora não conseguiu impor-se ao hino imperial, convertendo-se no Hino da Proclamação da República.
Os precedentes históricos mostram pois que a letra do hino já foi alterada. Mais ainda, aparentemente, haveria boas razões para mudá-la de novo. O texto perdeu muito de sua força imagética e contém palavras cujo sentido mesmo gente de formação universitária ignora. Frases como "teus risonhos lindos campos tem mais flores" podem soar como ironia, nestes tempos de ocupação predatória, invasões etc. etc. Só um grupo seleto de cultores da língua, ou entusiastas das palavras cruzadas, sabe o que significam termos ou expressões como "lábaro", "clava", "terra mais garrida", "florão da América". Mas o que soa gritante, a ponto de produzir embaraços quando cantado, é o verso inicial da segunda parte, o célebre "deitado eternamente em berço esplêndido".
Ao lado desses argumentos críticos, desenham-se os que justificam a intocabilidade da letra. Em primeiro lugar, lembremos que ela já entrou em nossos hábitos, ainda que só uns poucos consigam lembrá-la por inteiro. Depois, a frase "deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo" ganha sentido no mundo do sonho, como contraponto aos tempos atuais em que temos os olhos fixos no crescimento econômico, essa tábua de salvação medida no presente e projetada para o futuro.
A miragem do nirvana sintetiza-se em uma de nossas figuras emblemáticas de ficção -Macunaíma, o herói que fez da preguiça virtude. Ele cantaria a letra do hino com entusiasmo, enfatizando a segunda parte. Uma razão a mais para concluir que, mesmo nesta época de flexibilizações, a letra do Hino Nacional é intocável.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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