São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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O Brasil e a crise política na Rússia



Existe uma articulação para estabelecer o semipresidencialismo e permitir um terceiro mandato para FHC
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

O noticiário sobre a Rússia tem sido dominado pelos problemas econômicos. Mas há uma vertente política da crise russa, consequência da mistura de presidencialismo e parlamentarismo, o semipresidencialismo, que também deveria chamar a atenção dos brasileiros.
Existe uma articulação nos meios governistas para estabelecer o semipresidencialismo no Brasil. O objetivo da manobra, segundo notícias pipocando na imprensa, é o de possibilitar um terceiro mandato a FHC. A parte mais pedestre do governo federal seria conduzida por um primeiro-ministro.
O futuro Congresso se tornaria assembléia revisora. Por maioria simples se aprovariam a reforma tributária, a judiciária e, de cambulhada, a mudança do sistema de governo. O deputado Michel Temer, constitucionalista e presidente da Câmara, cargo ao qual poderá ser reconduzido, já declarou que não lhe parece haver empecilho legal à instauração do semipresidencialismo.
É nesse ponto que intervém o paralelo entre Brasil e Rússia. A Constituição russa de 1993 institucionalizou a relação de forças nascida da implosão da URSS e do ascenso de Ieltsin: um presidente dotado de amplos poderes, reelegível uma vez, em face de um Parlamento habilitado a aprovar o ministério proposto pela Presidência. Embora a Constituição tenha sido feita sob medida para Ieltsin, esse sistema se reporta ao semipresidencialismo, cujo modelo paradigmático está nas instituições da Quinta República francesa.
Os parlamentarismos clássicos, como os da Inglaterra e da Itália, baseiam-se numa única fonte de decisão dos cidadãos: as eleições legislativas, formadoras da maioria parlamentar. Nos presidencialismos de tipo estadunidense, como o brasileiro, as escolhas do eleitorado tomam corpo em duas vias complementares: as eleições legislativas federais e as presidenciais.
Os países semipresidencialistas, como França, Portugal e Rússia, lidam com o complicador apontado acima. O presidente é eleito pelo sufrágio direto, mas submete o ministério à aprovação do Parlamento. Em contrapartida, o presidente pode dissolver o Parlamento quando seu premiê for repetidamente recusado pelos deputados.
Há, portanto, um choque frontal entre as duas legitimidades. Os países nos quais vingou o semipresidencialismo inseriam-se na geopolítica democrática da União Européia e desfrutavam de um sólido quadro político-partidário. Puderam, na longa prática política embasada na estabilidade econômica, reduzir os conflitos entre presidente e Parlamento. Na Rússia, onde não havia esses estabilizadores, o sistema potencializou a crise econômica e política.
Três impasses ilustram os bloqueios do semipresidencialismo. O primeiro refere-se à fabricação de presidenciáveis. Todo primeiro-ministro aparece como um virtual candidato à Presidência, rival do presidente candidato à reeleição. Desde que Ieltsin iniciou, em 97, manobras a fim de "reinterpretar" a Constituição para concorrer a um terceiro mandato em 2000, o premiê Tchernomirdin começou a ser fritado.
O segundo liga-se ao Parlamento. Após demitir Tchernomirdin, em março, Ieltsin tentou emplacar Kirienko na chefia do governo. A Duma ("Câmara dos Deputados" russa) só aprovou Kirienko sob ameaça de dissolução pela Presidência. Hoje, a queda-de-braço recomeça, no contexto da nova indicação de Tchernomirdin como premiê.
A terceira encrenca reside na capacidade de retaliação do Parlamento. Na Duma, a maioria dos deputados teme perder o mandato em eleições antecipadas, na sequência de uma dissolução do Parlamento decretada por Ieltsin. Desde logo, a Duma bloqueia a Presidência até a corda quase romper: não vota o Orçamento, trava a aprovação das leis do programa contra a crise etc.
Ao lado da Duma, o Conselho da Federação, o "Senado" russo, incomodava pouco por conter biônicos manipulados pela Presidência. Agora, com a eleição direta nas regiões, antigovernistas têm assento nele. O general Lebed, governador de Krasnoiarsk (Sibéria), é um dos pesos-pesados da oposição no novo desenho do conselho; candidato a presidente, ele ajuda a Duma a atravancar a política de Ieltsin. O federalismo, que não existe nos países ocidentais semipresidencialistas, desponta como novo complicador do regime russo.
E o que tem isso a ver com o Brasil? Não tem a ver agora, mas pode vir a ter no futuro, caso essa geringonça constitucional seja implantada em nosso país.
O reeleitoralismo demonstrou seus efeitos nefastos no Brasil. Adiamento das reformas tributária, partidária e eleitoral no Congresso; reforço das oligarquias regionais pelo expediente da reeleição; casuísmo excluindo os detentores dos Executivos municipal, estadual e federal da desincompatibilização, obrigatória para ministros e demais candidatos a postos legislativos.
Após exercer por todo o seu mandato o presidencialismo imperial, por medidas provisórias, FHC parece redescobrir o semipresidencialismo, para gáudio do bloco parlamentarista que, nos últimos cinco anos, enfiou a viola no saco. Atrás do "modelo francês" semipresidencialista, vamos trombar com o caótico "modelo russo".
A manobra pode não ir adiante. Mas é preciso, de pronto, deixar claras duas questões cruciais. Primeiro, os eleitores devem ser prevenidos desde já do escopo das mudanças pretendidas na Carta caso o novo Congresso se torne uma miniconstituinte. Segundo, nenhum Congresso (ou emenda constitucional) poderá jamais violentar a vontade popular a ponto de estabelecer o regime semipresidencialista, duas vezes -nos plebiscitos de 1963 e 1993- rotundamente rejeitado pelo voto direto, livre e soberano do eleitorado brasileiro.


Luiz Felipe de Alencastro, 52, é professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).





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