São Paulo, quinta-feira, 07 de outubro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

O amigo americano

"Se eu fosse americano votaria em Kerry, mas, como sou brasileiro, prefiro a vitória de Bush". O parecer, externado há pouco por um especialista em relações internacionais, reflete um ponto de vista compartilhado por figuras influentes no Itamaraty e no Palácio do Planalto.
A reeleição de George Bush ajusta-se melhor ao interesse nacional que uma vitória de John Kerry? O argumento clássico é que os republicanos tendem menos ao protecionismo que os democratas. Historicamente, a noção é verdadeira. Desde o New Deal de Franklin Roosevelt, nos anos 30, o Partido Democrata estabeleceu uma aliança com os sindicatos. Mais recentemente, os democratas incorporaram algumas posições ambientalistas. Esses compromissos políticos embasam posturas protecionistas que contrastam com o tradicional livre-cambismo dos republicanos. Entretanto o panorama tornou-se mais matizado na última década, pois Bill Clinton impulsionou a Alca, contrariando a opinião sindical, e Bush distribuiu novos subsídios a indústrias siderúrgicas e a agricultores, contrariando a opinião dos círculos financeiros.
O uso do velho argumento revela uma resistência intelectual a encarar os novos problemas postos pela globalização. Kerry e Bush distinguem-se nitidamente no campo da política fiscal. O democrata promete reequilibrar o Orçamento americano. O republicano prega mais cortes de impostos. A sua reeleição abriria caminho para a explosão do déficit público e, logo à frente, uma brusca elevação dos juros destinada a atrair capitais internacionais. Nesse cenário, o Brasil sofreria os efeitos devastadores de mais um episódio global de "fuga de capitais" das chamadas economias emergentes.
Mas a preferência por Bush deriva, especialmente, do cálculo estratégico. Kerry alinha-se com a ala democrata liderada por Clinton, que mantém estreitas relações políticas e pessoais com Fernando Henrique Cardoso. De outro lado, Bush e Lula estabeleceram uma empatia pessoal que é consistente com a estreita cooperação entre Washington e Brasília nos temas de segurança hemisférica.
O Brasil adotou a Lei do Abate, assumindo o enfoque militar da "guerra ao narcotráfico", e fornece ao governo colombiano informações sensíveis na campanha contra a guerrilha. As diplomacias brasileira e americana atuam em afinado concerto nas crises políticas da Venezuela e da Bolívia. A Petrobras fingiu-se de surda diante da proposta de Hugo Chávez para uma exploração binacional dos recursos petrolíferos. O governo brasileiro recusa-se a respaldar a dura linha de negociação com o FMI conduzida pela Argentina. Sobretudo Brasília aceitou a missão pouco honrosa de estabilizar o regime instalado pelos Estados Unidos no Haiti.
"Gostaria de expressar meu agradecimento ao governo brasileiro pelo papel de liderança dentro das Nações Unidas ao colocar à disposição tropas no Haiti. É uma missão desafiadora, e o Brasil esteve a altura do desafio." Essas palavras, do secretário de Estado americano Colin Powell, em visita ao Brasil, celebraram a nova "relação especial" entre os governos Bush e Lula. Kerry criticou a ação de mudança de regime do governo americano no Haiti, ressaltando que teria enviado tropas para defender o presidente constitucional do país. Powell quase prometeu apoio americano à aspiração brasileira de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Esse é o presente que Lula espera receber de um Bush reeleito.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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