São Paulo, segunda-feira, 07 de novembro de 2005

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TENDÊNCIA/DEBATES

Menino de rua

OSCAR NIEMEYER


Infelizmente, a burguesia não se interessa pelo drama que vivem os meninos de rua
É uma historinha verídica que me parece oportuno contar.
Era uma manhã fria de inverno, o céu branco demais. Uma chuva fina a descer devagar sobre a cidade. Tempos de Inglaterra, como dizia o Jacinto de Tormes, personagem de "A Cidade e as Serras", de Eça de Queiroz.
Aproximava-me da entrada do escritório, onde um rapazinho, com um tabuleiro de doces pendurado ao pescoço, parecia me esperar. Devia ter uns dez ou 11 anos de idade. Tinha um ar triste, desprotegido, que me chamou a atenção. Dei-lhe algum dinheiro e entrei.
Foi ainda no elevador que fiquei a lembrar, comovido, da pobreza que exibia, essa miséria imensa que se multiplica pelo mundo, cada vez mais forte e desesperada.
Tão indignado me sentia que, ao ingressar no escritório, pedi ao primeiro que apareceu:
- Vai lá embaixo e me traz esse menino que vende doces pelas ruas.
E, pouco depois, lá estava ele, sentado diante de mim, descalço, pobremente vestido. Tinha uma expressão compenetrada, como se estivesse consciente da vida que levava, a perambular nas madrugadas pela cidade. Perguntei-lhe o seu nome:
- Pablo, me respondeu.
E, como indagasse onde morava, explicou-me que dormia nas calçadas dos Arcos da Lapa, acrescentando:
- Sou de Caratinga, Minas Gerais. Vim para o Rio escondido na traseira de um caminhão.
Senti que já se habituara a essa vida de vadiagem a correr com os colegas pelas ruas da cidade, muitas vezes perseguido pela polícia. Indaguei-lhe se gostaria de estudar, de ter uma casa onde morar:
- Sim, respondeu. Eu queria ser advogado ou cantor.
E, quando lhe disse que iria ajudá-lo e arranjar um lugar onde pudesse dormir, a nossa empregada, Maria das Graças, se aproximou e, boa pessoa que era, interveio:
- Dr. Oscar, ele pode ficar no meu apartamento, disse, generosamente.
A decisão estava tomada. Pedi-lhe que cuidasse do garoto e o trouxesse mais tarde ao escritório.
E, lá pelas 17h, os dois apareceram. Ele, de banho tomado, roupa nova, lembrando, como num milagre qualquer, outro menino de classe média do Rio.
Dei-lhe algum dinheiro, recomendando a Maria das Graças que não o fizesse prisioneiro, que o deixasse sair quando quisesse, fixando apenas a hora de voltar para casa.
Passaram-se dois ou três dias e Maria das Graças entrou apavorada no escritório dizendo que o menino sumira e que ela e o marido, motorista de táxi, o haviam procurado de madrugada, sem resultado, por toda a cidade.
Mais duas semanas... e Pablo aparece no escritório. Maltrapilho como antes, com o ar triste, aparentemente resignado, sem nos dar nenhuma explicação. Na verdade, já estava viciado a correr com os amigos pelas noites do Rio, num vale-tudo que a marginalidade permite.
Conversamos. Perguntei-lhe se não queria voltar a Minas Gerais, para a casa dos pais. Ele afinal concordou. Entramos, então, em contato com o Juizado de Menores. De acordo com a lei, ele não poderia viajar sozinho.
Lembro-me de que, na véspera de viajar, retornou ao escritório para se despedir de todos. De roupa nova outra vez, sorridente, pedindo-me que tirasse, com a pequena máquina fotográfica que lhe dera, um retrato a seu lado.
No dia do embarque, Maria das Graças e Amaro, meu motorista, o levaram até a rodoviária. Pensávamos o problema resolvido, quando, dois meses depois, ele apareceu de novo no escritório, maltratado como antes, e nós sem ânimo para dele cuidar outra vez. Sentimos, com pesar, que nada em seu favor podíamos fazer.
Decorreram quase dez anos. E, três meses atrás, Vera, nossa companheira, atendeu o telefone. Era o Pablo, que, com voz aflita, indagava:
- Como vai o dr. Oscar? Está bem?
- Tudo em paz, respondeu Vera. Mas por que você me faz essa pergunta?
- Uns amigos me disseram que ele tinha sido seqüestrado.
- Nada disso, está tudo calmo, ela replicou.
E, sem outros comentários, ele desligou o telefone.
Dessa conversa, só me interessou sentir que o Pablo se tornara um bom amigo nosso, preocupado com tudo que pudesse nos acontecer.
O que eu quero demonstrar com essa história é que, entre os meninos de rua, como os das favelas, existe gente sensível, de bons sentimentos, capaz de guardar a lembrança dos que um dia tentaram ajudá-los generosamente, embora revoltados com a pobreza que os persegue a vida inteira. É claro que há exceções, que alguns tomam caminhos diferentes; porém, os motivos são tantos que não cabe discuti-los neste pequeno texto.
Infelizmente, a burguesia não se interessa pelo drama que vivem os meninos de rua, e até os negrinhos das favelas começa a odiar, vendo-os como futuros inimigos, numa atitude odiosa e racista que não podemos aceitar.
Oscar Niemeyer, 97, arquiteto, é um dos criadores de Brasília (DF). Tem obras edificadas na Alemanha, na Argélia, nos EUA, na França, em Israel, na Itália, no Líbano e em Portugal, entre outros países.

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