São Paulo, Terça-feira, 07 de Dezembro de 1999


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Canudos, nós e o mundo

ARIANO SUASSUNA

Em Canudos, a bandeira usada pelos seguidores de Antônio Conselheiro era a do Divino Espirito Santo -a bandeira do nosso povo, pobre, negro, índio e mestiço. Povo que o Brasil oficial, o dos brancos e poderosos, mais uma vez (e como já sucedera em Palmares e no Contestado), iria esmagar e sufocar, confrontando-se ali, no caso, duas visões opostas de justiça.
Como era de esperar, a "justiça" dos poderosos também ali cortou a cabeça do Brasil real. E os acontecimentos de Canudos continuam a se repetir a cada instante. Em todos os lugares. Em todos os campos de atividade. Diariamente, incessantemente. Quando, no interior do país, uma milícia de poderosos, governamental ou não, assassina um pobre posseiro e sua família, é o Brasil dos que incendiaram e arrasaram Canudos que está atirando no Brasil real e matando seu povo. Quando, numa grande cidade, a polícia invade uma favela ou destrói uma "invasão", são outros tantos dos nossos inumeráveis "arraiais de Canudos" pertencentes ao Brasil real que estão sendo destruídos e assolados pelo país oficial, que, para isso, consegue recrutar, a seu serviço, outros pobres integrantes do Brasil real.
Mas temos que, ao mesmo tempo, ampliar e restringir a imagem, para que ela se torne realmente eficaz. Ampliá-la no plano internacional para dizer que, diante de países ricos e poderosos como os Estados Unidos ou a Rússia, o chamado Terceiro Mundo é um imenso arraial de Canudos, pobre e injustiçado. De modo que, quando os Estados Unidos ameaçam a Líbia, Cuba, ou o Irã; quando, por si ou por seus prepostos, invadem Granada e o Panamá; quando a Rússia e a França se impõem ao Afeganistão ou ao Chad; e quando todos os grandes se juntam para invadir o Iraque -em todos estes casos são outros tantos "arraiais de Canudos" que estão sendo esmagados ou humilhados.
Mas, para não sermos hipócritas, temos também que restringir a imagem à nossa vida pessoal, pois ou reconhecemos as nossas culpas ou nunca começaremos a virar realmente as costas ao "inferno interior" que cada um de nós carrega dentro de si. Tenhamos então a hombridade de reconhecer que, em casa, todos nós temos nossos "arraiais de Canudos" particulares -na cozinha, no jardim ou no lavador. Por isso, quando, na casa de qualquer um de nós, brasileiros brancos e privilegiados, um casal rico ou de classe média oprime e explora uma empregada doméstica negra pobre, é o Brasil oficial que está humilhando o Brasil real e violando a dignidade de seu direito.
Por isso, a justiça somente será verdadeira quando um dia vier a se anular essa terrível dilaceração de opostos. Ou seja, quando a justiça do país oficial, pela primeira vez em nossa atormentada história, se tornar expressão perfeita e acabada da justiça do Brasil real.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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