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Canudos, nós e o mundo
ARIANO SUASSUNA
Em Canudos, a bandeira usada pelos
seguidores de Antônio Conselheiro
era a do Divino Espirito Santo -a
bandeira do nosso povo, pobre, negro,
índio e mestiço. Povo que o Brasil oficial, o dos brancos e poderosos, mais
uma vez (e como já sucedera em Palmares e no Contestado), iria esmagar
e sufocar, confrontando-se ali, no caso, duas visões opostas de justiça.
Como era de esperar, a "justiça" dos
poderosos também ali cortou a cabeça
do Brasil real. E os acontecimentos de
Canudos continuam a se repetir a cada instante. Em todos os lugares. Em
todos os campos de atividade. Diariamente, incessantemente. Quando, no
interior do país, uma milícia de poderosos, governamental ou não, assassina um pobre posseiro e sua família, é o
Brasil dos que incendiaram e arrasaram Canudos que está atirando no
Brasil real e matando seu povo. Quando, numa grande cidade, a polícia invade uma favela ou destrói uma "invasão", são outros tantos dos nossos
inumeráveis "arraiais de Canudos"
pertencentes ao Brasil real que estão
sendo destruídos e assolados pelo país
oficial, que, para isso, consegue recrutar, a seu serviço, outros pobres integrantes do Brasil real.
Mas temos que, ao mesmo tempo,
ampliar e restringir a imagem, para
que ela se torne realmente eficaz. Ampliá-la no plano internacional para dizer que, diante de países ricos e poderosos como os Estados Unidos ou a
Rússia, o chamado Terceiro Mundo é
um imenso arraial de Canudos, pobre
e injustiçado. De modo que, quando
os Estados Unidos ameaçam a Líbia,
Cuba, ou o Irã; quando, por si ou por
seus prepostos, invadem Granada e o
Panamá; quando a Rússia e a França
se impõem ao Afeganistão ou ao
Chad; e quando todos os grandes se
juntam para invadir o Iraque -em
todos estes casos são outros tantos
"arraiais de Canudos" que estão sendo esmagados ou humilhados.
Mas, para não sermos hipócritas, temos também que restringir a imagem
à nossa vida pessoal, pois ou reconhecemos as nossas culpas ou nunca começaremos a virar realmente as costas
ao "inferno interior" que cada um de
nós carrega dentro de si. Tenhamos
então a hombridade de reconhecer
que, em casa, todos nós temos nossos
"arraiais de Canudos" particulares
-na cozinha, no jardim ou no lavador. Por isso, quando, na casa de qualquer um de nós, brasileiros brancos e
privilegiados, um casal rico ou de classe média oprime e explora uma empregada doméstica negra pobre, é o
Brasil oficial que está humilhando o
Brasil real e violando a dignidade de
seu direito.
Por isso, a justiça somente será verdadeira quando um dia vier a se anular essa terrível dilaceração de opostos. Ou seja, quando a justiça do país
oficial, pela primeira vez em nossa
atormentada história, se tornar expressão perfeita e acabada da justiça
do Brasil real.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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