São Paulo, quinta-feira, 07 de dezembro de 2006

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A retirada militar do Iraque

CARLOS DE MEIRA MATTOS


Segundo a doutrina militar, a retirada estratégica de um Exército perdedor é uma operação de execução difícil. A historia é rica de desastres


APÓS A vitória dos democratas nas últimas eleições e ainda mais com a divulgação, ontem, do relatório do Grupo de Estudos do Iraque, incentivou-se nos Estados Unidos a discussão sobre a retirada das tropas militares do Iraque.
O senador democrata Carl Levin e outros insistem na retirada das tropas no prazo de seis meses. A reação do grupo conservador que apóia a estratégia militar de Bush apresentou as razões desfavoráveis à retirada.
Bush insiste no êxito futuro da estratégia política aplicada por seu governo -criar no Iraque um governo democraticamente eleito que seja capaz de assumir as responsabilidades administrativas, a contenção das três etnias rivais (sunita, xiita e curda) e garantir a segurança e a paz civil.
Nos quatro anos de ocupação do país -particularmente pelas tropas norte-americanas e inglesas-, a solução imaginada pelos governos de Washington e Londres tem se mostrado ineficiente. Basta lembrar que o terrorismo vem crescendo no país, apresentando uma estatística de 109 atentados suicidas a bomba no primeiro ano, 613 no segundo, 1.037 no terceiro e 1.002 no quarto ano. Mais de 3.000 militares norte-americanos já foram mortos pelos atentados durante esse período. O custo da ocupação para o Tesouro americano vem crescendo de ano para ano. Dos 45 bilhões de dólares no primeiro ano, chegou a 100 bilhões de dólares neste último ano.
Nos argumentos apresentados perante o Senado, o general John Abizaid, comandante supremo das forças norte-americanas no Iraque, expressa sua opinião contrária à retirada militar mediante prazo preestabelecido. Segundo o general, a retirada das forças americanas põe em risco a possibilidade política de passar as responsabilidades pela segurança e pacificação do país ao governo ali instalado após a ocupação. O próprio presidente Bush tem dito que uma retirada a curto prazo não evitaria submeter a população a um banho de sangue.
Os argumentos oferecidos ao Senado pelo chefe militar norte-americano ofereceram razões políticas para o não-estabelecimento de um prazo para a retirada. Entretanto, ele preferiu omitir os perigos operacionais da retirada de um Exército depois de uma guerra malsucedida. A historia é rica de desastres acontecidos nas retiradas militares mal planejadas ou tentadas inoportunamente. Os EUA devem estar lembrados da lição do Vietnã -retirada que se tornou debandada desordenada e vergonhosa.
De acordo com a doutrina militar, a retirada estratégica de um Exército perdedor é uma operação de execução difícil. Precisa ser muito bem planejada e realizada em momento oportuno, a fim de que a tropa se retire ordenadamente, sem grandes sacrifícios de vidas e material bélico.
Além do caso do Vietnã, a história militar traz outros exemplos de retiradas fracassadas. É emblemática a retirada do grande Exército napoleônico de Moscou em 1812. No auge do seu prestígio militar e político, depois de ter imposto o seu poder inquestionável sobre toda a Europa continental, Bonaparte invadiu a Rússia com seu grande Exército -600 mil homens, 180 mil animais de montaria e de tração e mais de 1 milhar de canhões.
Após um começo de vitórias fáceis, é submetido à estratégia do genial general russo Kutusov, que o deixa ocupar Moscou depois de evacuar toda a população da cidade e retirar todos os meios de subsistência que pudessem servir ao invasor. Ante a situação insustentável, Napoleão decide abandonar Moscou e retirar o seu Exército para a fronteira francesa.
Submetido a um inverno inclemente, carente de alimentação e de agasalho, acutilado, na longa marcha de retirada, sem cessar, pelas tropas de Kutusov e pelas guerrilhas organizadas pelo russo, as forças de Napoleão são completamente dizimadas em Beresina. Conseguem alcançar a fronteira francesa apenas 37 mil homens esfarrapados, famintos, enfermos.
No caso da retirada dos 140 mil americanos que ocupam o Iraque, com enorme e moderno equipamento bélico, embora não deva haver o inverno inclemente que derrotou os franceses, haverá, é de supor, guerrilha igualmente inclemente e impiedosa, infatigável na ação terrorista.
Os políticos americanos que defendem a retirada das tropas do Iraque só têm avaliado as conseqüências políticas dessa evacuação. Mas os militares devem estar preocupados com os perigos de uma retirada estratégica em clima de terror incontido dos grupos terroristas infiltrados na população.
Devem se lembrar das estratégias de Chou En-lai que sofreram na carne e da lição histórica de Kutusov.
CARLOS DE MEIRA MATTOS, 93, doutor em ciência política e general reformado do Exército, é veterano da Segunda Guerra Mundial e conselheiro da Escola Superior de Guerra.


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