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D. Cappio e o mito da falta d'água
JOÃO ALVES FILHO
D. Luiz Flávio Cappio tem consciência também de quatro fatos dos quais a nação precisa tomar conhecimento
COM A retomada da greve de fome de dom Luiz Flávio Cappio,
o presidente Lula e seus áulicos
tentam passar a imagem de que ele é
um fanático religioso. O ministro da
Integração, Geddel Vieira Lima, ousa
desrespeitosamente associar a imagem do bispo a uma espécie de fundamentalista islâmico.
Na realidade, d. Cappio é um líder
religioso profundamente comprometido com sua principal missão, que é
divulgar a fé aos sertanejos e levar a
eles os eternos ensinamentos de
Deus, mas sem desconectá-los do
mundo injusto em que habitam.
Daí por que, convencido de que
quem convive com a miséria não tem
serenidade para cultivar dignamente
a religião, se empenha em extirpar a
miséria, defendendo os sertanejos daqueles que tentam legitimá-la com
demagogia e promessas enganosas.
Trata-se de um sábio, culto, avesso
à demagogia, conhecedor do sertão
nas suas entranhas e, em especial, do
Velho Chico, cujas margens percorreu a pé denunciando sua degradação
bem antes de se falar em transposição. Um estudioso das técnicas de
convivência com as secas e equacionamento dos recursos hídricos locais
-tão simples e baratas que os chineses e os indianos as praticam com sucesso há milênios em regiões de climas bem mais hostis do que o nosso.
D. Cappio tem consciência também
de quatro fatos dos quais a nação precisa tomar conhecimento.
Primeiro, a transposição não é destinada a salvar os nordestinos da seca,
pois apenas uma minoria irrelevante
do semi-árido receberá água na porta,
mas se destina ao agronegócio, que
utilizará uma água caríssima, levada a
700 km, que terá que ser subsidiada a
vida inteira. Porém, temos milhões de
hectares de terras à beira do rio cuja
irrigação, sem subsídio, proporcionaria alimentos baratos e geraria 1 milhão de empregos.
Segundo, o governo, maquiavelicamente, esconde uma realidade que
surpreenderia a nação: não há falta de
água no Nordeste setentrional, mas,
isto sim, ela existe em abundância tal
que, teoricamente, daria para abastecer 100% dos nordestinos.
Terceiro, o rio São Francisco está
na UTI e a transposição ameaça provocar sua morte, gerando o maior desastre ecológico e socioeconômico da
história brasileira.
Quarto, Lula mentiu para conseguir a interrupção da primeira greve
de fome de d. Cappio, certamente
com receio das conseqüências para a
reeleição, com promessas enganosas
de que iria parar a obra da transposição para discutir com ele, com membros da sociedade civil e ecologistas
que têm propostas alternativas, demonstrando tecnicamente projetos
racionais para levar água na porta pela metade dos custos para a totalidade
dos dez Estados do semi-árido nordestino e mineiro. Por dois anos, o
bispo esperou pacientemente a abertura do prometido diálogo, mas a resposta de Lula foi ameaçadoramente
mandar o Exército iniciar a obra.
Por falta de espaço, não posso aqui
detalhar o gigantesco manancial de
água disponível nos Estados do Ceará,
do Rio Grande do Norte e da Paraíba,
explicando a simplicidade do supracitado projeto alternativo.
Faço, contudo, um convite ao ministro Geddel, que executa a obra que
tanto combateu, para um debate
aberto, para que a nação saiba de toda
a verdade sobre essa obra freneticamente aplaudida pelos empreiteiros,
seus felizes apaniguados, pelo agronegócio retrógrado, que pleiteia água
subsidiada, e pela indústria da seca,
que, após sua conclusão, continuaria
abastecendo os famigerados carros-pipas e as latas d'água na cabeça da
pobre gente dos próprios quatro Estados "beneficiários" da obra da transposição, que, tardiamente, compreenderia que foi a principal enganada pelo governo Lula, que fomenta
a cizânia entre irmãos nordestinos.
Finalmente, uma ponderação final
para que o presidente Lula, que, do alto de sua autolouvação, costuma ser
infenso a conselhos, avalie melhor o
artigo de frei Leonardo Boff, que, com
a autoridade de ex-professor do então
seminarista dom Cappio, com quem
ele já se destacava por "uma aura de
simplicidade e santidade", advertiu:
"Entre o povo que não quer a transposição e as pressões de autoridades civis e eclesiásticas, dom Luiz ficará do
lado do povo. Irá até o fim. Então a
transposição será aquela da maldição,
feita à custa da vida de um bispo santo
e evangélico. Estará o governo disposto a carregar essa pecha pelo futuro
afora?".
JOÃO ALVES FILHO, 66, é engenheiro civil. Foi governador de Sergipe por três mandatos (1983-87, 1990-94 e
2003-06) e ministro do Interior (gestão Sarney). É autor
de, entre outros livros, "Transposição de Águas do São
Francisco: Agressão à Natureza vs. Solução Ecológica".
jafsergipe@gmail.com
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