São Paulo, quinta-feira, 08 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Elites, heranças e maldições

JOSÉ MÁRCIO CAMARGO

Mimetizadas por ideologias vigentes nos países desenvolvidos, nossas elites são incapazes de avaliar as especificidades histórico-estruturais de nossa economia, insistindo em importar idéias bem-sucedidas nesses países com realidades totalmente diferentes da nossa. Parte dessa elite considera que a verdadeira herança maldita deixada é o fato de o Brasil ter um dos piores índices de desigualdade de renda do mundo, uma das maiores porcentagens da população vivendo abaixo da linha de pobreza entre países com renda per capita similar, e o fato de que a desigualdade e a pobreza permaneceram basicamente constantes nos últimos 40 anos.
Para essa parte da elite, é inaceitável que, do total de gastos com aposentadorias e pensões, quase 50% sejam apropriados pelos 10% mais ricos, que os 10% mais pobres fiquem com menos de 5% do total e que 40% dos aposentados brasileiros tenham entre 45 e 60 anos. Na Espanha, por exemplo, mais de 40% dos aposentados têm 70 anos ou mais e os 10% mais pobres se apropriam de 10%, e os 10% mais ricos, de 15%, do total de gastos.


O efeito da atuação do Estado na redução da desigualdade de renda no Brasil é de pífios 12%


Essa parte da elite entende que os gastos com ensino superior são um investimento. Mas não consegue aceitar que tal investimento seja apropriado privadamente pelos filhos das famílias que estão entre os 10% mais ricos da população, por meio da gratuidade do ensino universitário público, pois 46% dos alunos dessas universidades provêem dessas famílias. Enquanto isso, 80% das crianças das famílias pobres brasileiras, o que significa 40% de nossas crianças, não completam o ensino fundamental -e o gasto público por aluno no ensino superior é mais de 15 vezes maior do que no ensino fundamental.
Parece impossível para essas pessoas aceitar que os 10% mais ricos da população, que têm renda familiar média anual de R$ 38.543, recebam transferências governamentais de R$ 8.177 por ano, enquanto os 10% mais pobres, com rendas médias anuais de R$ 1.018, recebam transferências de R$ 391 por ano. Por essa razão, o efeito da atuação do Estado na redução da desigualdade de renda no Brasil, por meio da tributação e dos gastos sociais, é de pífios 12%, enquanto nos países desenvolvidos varia entre 25% e 33% (dados do documento "Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002", do Ministério da Fazenda).
Essa porção da elite brasileira não tem idéias inovadoras e, se as tem, são idéias simples e direcionadas a objetivos menores, como aumentar a probabilidade de que as crianças e jovens das famílias pobres completem o ensino fundamental e médio. No início dos anos 90, por exemplo, propôs-se um programa de transferência de renda para famílias pobres condicionado a que elas mantivessem seus filhos matriculados em escolas públicas, programa esse depois denominado Bolsa-Escola.
A idéia de somente transferir renda mediante condicionantes que aumentem o bem-estar social passou a fazer parte de outros programas sociais, tanto no Brasil quanto no exterior, e gerou uma miríade de programas com as mesmas características. Como resultado, surgiu a proposta de unificação e racionalização desse conjunto de programas, com condicionantes específicas para famílias com diferentes características, incluindo principalmente os jovens matriculados no segundo grau.
Mas esses programas têm um objetivo limitado: aumentar o investimento das famílias pobres na educação e na saúde de suas crianças e jovens. Eles partem do pressuposto de que, para ter trabalho decente, o único meio é aumentar a produtividade do trabalhador. Portanto, para resolver os problemas de desigualdade e pobreza, é condição necessária que todas as crianças completem o ensino fundamental e o ensino médio. Só assim será possível gerar igualdade de oportunidades no mercado de trabalho.
Essa é uma idéia, porém, que não leva em consideração as especificidades histórico-estruturais da economia brasileira e só funciona nos países desenvolvidos. Na verdade as causas da pobreza e da desigualdade no Brasil são o "caráter financeirizado (sic) da riqueza" e a "precarização do mercado de trabalho" (M. Pochmann; "A verdadeira herança maldita", Folha, pág. A3, 22/12/03).
Felizmente o país tem também uma elite não-colonizada, que defende seus privilégios e direitos adquiridos, a manutenção da atual estrutura de transferências, aposentadoria integral do servidor público, gratuidade da universidade pública, programas sociais de acesso universal que reproduzem a desigualdade de renda e mantêm a desigualdade de oportunidades entre os filhos das famílias ricas e pobres no mercado de trabalho. Para estes, o importante é "desfinanceirizar a riqueza" e intervir no funcionamento do mercado para reduzir a precariedade, independentemente do nível de qualificação do trabalhador.
O que tem deixado essa parte da elite brasileira perplexa é que, diferentemente do que ela supunha, o atual governo não parece estar disposto a seguir esse caminho. Não apenas melhorou o superávit primário necessário para honrar a dívida pública e controlou a inflação, mas promoveu uma reforma da Previdência reduzindo o valor das aposentadorias dos servidores públicos e está se propondo a implementar o programa Bolsa-Família, base da proposta de unificação e racionalização dos programas de transferência condicionada de renda. Ou seja, também este governo parece "acometido da mesma espécie de cegueira" das elites mimetizadas. Deve ser a maldição do subdesenvolvimento.

José Márcio Camargo, 56, doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), é professor de economia da PUC-RJ e sócio da Tendências Consultoria Integrada.


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