São Paulo, segunda, 8 de fevereiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Solidariedade ao povo de Minas e Rio Grande


Intervir nos Estados, para o governo atual, significaria assumir dívidas geradas pelos seus aliados políticos


ROBERTO ROMANO

Os cidadãos esperavam encontrar na imprensa uma análise dos últimos fatos brasileiros à luz do pacto federativo. Mas o silêncio jornalístico e acadêmico foi eloquente, com a honrosa exceção do professor Ricardo Seitenfus (Opinião, pág. 1-3, 5 de fevereiro).
O Brasil é uma república unida por vínculos indissolúveis, enuncia o primeiro parágrafo da Constituição vigente. Tudo o que ocorrer ao todo político, bom ou ruim, ordena a sorte das partes, os Estados, e vice-versa. As últimas atitudes do poder central ferem essa cláusula da Carta Magna, com a conivência do Parlamento. O Judiciário, até o presente momento, assume a dignidade de zelar pelo respeito ao contrato que fundamenta a existência do país.
A Federação brasileira foi conquista de séculos. Muitos sacrifícios foram assumidos pelas distintas populações que a constituem, de norte a sul. O uso da força física, com o Exército, somado à diplomacia, impediu a dissociação das regiões, tendência vitoriosa na América espanhola. Mas permanecem nos Estados, como brasa sob a cinza, lembranças e desejos de independência. Os últimos combates nessa linha ocorreram em 1932: paulistas e mineiros contra o arrogante e ineficaz Executivo central.
O que ocorre num pacto federativo? As partes reunidas entregam-se umas às outras e definem um poder comum para a proteção dos povos, em todos os sentidos. Caso essa premissa seja negada, essa união perde todo o significado. Se o governo trai uma ou várias unidades sob seu comando, ele subverte o Estado maior, que deveria ser uma síntese viva de todos os seus elementos.
Lendo a Constituição de 1988, é possível notar que o poder federal precisa "assegurar a defesa nacional", administrando também "as reservas cambiais do país", além de "fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguro e de previdência privada".
Cabe-lhe o direito de intervir nos Estados e municípios para "manter a integridade nacional". Ele tem, pois, o direito e o dever de intervir nas unidades políticas menores para reorganizar as finanças da instância que "suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior".
Após a moratória de Minas e o depósito em juízo pelo Rio Grande do Sul, seria possível a intervenção do poder central, desde que provada, na forma devida, a inexistência de "força maior" na suspensão dos pagamentos. Intervir nos Estados seria um modo de impor a salvação coletiva. O governo, mesmo com o risco de autoritarismo, assumiria a responsabilidade pelo saneamento das contas públicas desta ou daquela região.
Mas a atitude dos nossos governantes foi oposta à defesa das unidades reunidas sob sua égide, furtando-se à intervenção. Pelo contrário: quebrando o vínculo maior, a Federação brasileira rompeu o pacto que é sua razão de existir, ao escrever a organismos internacionais anunciando um fato discutível, a suposta inadimplência dos mineiros e gaúchos. Não é possível encontrar na Constituição um amparo para essa atitude. Intervir nos referidos Estados, para o governo atual, significaria assumir as dívidas geradas pelos seus aliados políticos. Esse ônus foi abandonado em proveito de uma vilania cometida contra dois povos que deveriam contar com sua proteção.
Os brasileiros que não aceitam essa quebra da confiança, efetivada pelos que deveriam garantir a soberania do todo e de cada uma das partes integrantes de nosso país, precisam manifestar-se contra esse ato, empenhando solidariedade total aos nossos irmãos gaúchos e mineiros.
Aceitar essa traição é sujeitar-se ao risco de uma ruptura profunda dos Estados com o poder central. Assistimos, com pavor, às lutas internas que resultaram de federações fracassadas, como a Rússia, a Iugoslávia e outras. A prudência exige que não se repitam entre nós os erros daqueles países.


Roberto Romano, 52, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.