São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mama ou próstata

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI


Por que a mortalidade de mulheres, com todos os avanços, segue crescendo? Tudo começa na burocracia para fazer a mamografia

NESTE último ano, o dobro do espaço nos jornais foi dedicado ao câncer de próstata, se comparado com o espaço reservado ao câncer de mama. Na melhor das hipóteses, decorre do movimento de liberação masculina, na trilha da teoria hegeliana de tese, antítese e síntese, ou, na pior delas, da permanência da discriminação da mulher.
Quero lembrar, nesta semana de homenagem à mulher, que 1 milhão delas, neste ano, terão câncer de mama. Contrariamente ao conceito predominante -o de que câncer de mama é doença dos países e das mulheres ricas-, mais da metade desses tumores ocorrerá nos países em desenvolvimento, onde não só a incidência como também a mortalidade crescem mais do que nas nações desenvolvidas. No Brasil, em 20 anos, o número de casos e o número de mortes dobraram. Neste ano, ultrapassaremos 50 mil mulheres e 10 mil mortes.
Quando diagnosticamos tumores menores do que 1 cm -e isso é perfeitamente possível usando a mamografia-, curamos 90% dos casos, conservamos a mama em perto de 100% e, graças à técnica do gânglio sentinela, preservamos a axila em 90% das operadas. Com a colaboração dos cirurgiões plásticos, muitas mulheres saem do centro cirúrgico com a mama esteticamente melhor do que era quando entraram e o tratamento custa um quarto do de casos avançados.
Parte desses tumores (6%) são genéticos e temos formas de preveni-los parcialmente por meio de medicações ou cirurgias. Conhecemos os fatores de risco dos outros 94%, quase todos decorrentes de hábitos de vida.
Alguns deles podem ser modificados, como a idade da primeira gravidez, o número de partos, a lactação no peito, o número de ciclos menstruais, a obesidade e o uso de hormônios -que deixou de ser uma panaceia na menopausa para tornar-se um tratamento útil, desde que com a droga certa, em dose mínima e por tempo limitado.
Por que então, com tudo isso, a mortalidade continua aumentando no país inteiro? Começa pela burocracia para fazer mamografia. A paciente deve ir ao centro de saúde para marcar uma consulta (poucos centros de saúde têm ginecologistas, que estão com agendamento lotado). Quando ela consegue a autorização, o exame, o resultado e o retorno ao ginecologista são também etapas demoradas e burocratizadas. Se tiver alguma imagem suspeita, novos e múltiplos exames... novas e múltiplas esperas.
Qual a mulher que, trabalhando fora e com filhos, consegue vencer essas barreiras, as quais, de formas diferentes, acontecem também em bom número de planos de saúde? Tudo isso é desnecessário, pois, para fazer mamografia, basta ter mais de 40 anos -e isso é lei (nº 11.664 de 29/4/ 2008).
A outra razão é a conduta equivocada do Inca (Instituto Nacional de Câncer), que determina o uso do exame para apenas 50% das mulheres acima de 50 anos nos 1.223 mamógrafos públicos instalados, que devem fazer somente 16 mamografias por dia.
Com essas regras absurdas, eles atendem uma pequena parcela da população. Pesquisa da Pnad 2006, do IBGE, mostra que 49,7% das mulheres com mais de 50 anos nem sequer fizeram uma mamografia.
Se quisermos realizar diagnóstico precoce e diminuir a mortalidade, a mamografia deve ser realizada a partir dos 40 anos -e não dos 50. É evidente que a capacidade instalada dos mamógrafos é de 40 mamografias por dia -e não de 16. Com seu uso adequado, poderíamos atender todas as mulheres que precisam do exame, sem ter de comprar um mamógrafo sequer. Em vez disso, continuam-se adquirindo mamógrafos e deixando-os na ociosidade.
Falta também educação para saúde e controle social, pois, de acordo com a mesma Pnad, 67% das mulheres não sabiam que a mamografia era o método correto de detecção. Finalmente, a terapêutica oferecida é precária na maioria dos convênios e em alguns hospitais públicos, negando às mulheres a prática de reconstrução (lei nº 10.223/2001), a técnica do linfonodo sentinela, os remédios necessários, como Trastuzumab, e a terapêutica em centros de referência com médicos especializados.
Não li todos os textos sobre câncer de próstata, mas posso garantir que o que disse aqui, mutatis mutandis, vale também para essa glandulazinha incômoda. Portanto, cancelando a brincadeira inicial, o que precisamos é de uma gestão competente dos serviços de saúde públicos e privados, olhando para o usuário.


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI , 74, é secretário especial da Mulher do Município de São Paulo, professor emérito da Universidade de São Paulo e da Unicamp e membro da Academia Nacional de Medicina. Foi secretário estadual da Educação (1986-1987) e da Saúde (1987-1991) e reitor da Unicamp (1982-1986).

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