São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O paletó do general

LIRA NETO

No final da tarde do 1º de abril de 1964, com as estrelas do uniforme reluzindo nos ombros, o general Castello Branco saiu do prédio do Ministério da Guerra e ordenou ao motorista que, antes de seguir para o QG golpista, instalado num edifício da av. Atlântica, em Copacabana, rumasse para Ipanema. No número 394 da Nascimento e Silva, o general enfim desceu do carro, abriu o portão, foi ao andar superior do pequeno sobrado onde morava e, alguns minutos depois, voltou de lá à paisana, vestido em um sóbrio terno preto. A partir de então, evitaria qualquer aparição pública em trajes militares. O paletó e a gravata serviriam para dar ares civis ao movimento armado que, àquela altura, praticamente já derrubara João Goulart.
O episódio, narrado com detalhes em "Castello: a marcha para a ditadura" (editora Contexto), é revelador de um dos traços mais marcantes da personalidade e da trajetória profissional de Castello Branco. Desde o início da carreira, ele mantivera-se à margem da série de intervenções militares sofridas pelo país ao longo do século 20, quando as Forças Armadas então se arvoravam uma espécie de Poder Moderador na vida política nacional. Com isso, Castello construíra entre seus pares a fama de convicto legalista. Fazia questão de ser visto como um soldado profissional, ou seja, um militar avesso à política e dedicado unicamente à faina da caserna.


[Castello] soube se utilizar de sua imagem de moderado para conferir um verniz pretensamente democrático ao golpe


Nos heróicos anos 20, por exemplo, Castello esquivou-se de participar do movimento tenentista, no qual pontificava a esmagadora maioria de seus antigos colegas da Escola Militar de Realengo. Do mesmo modo, combaterá a Coluna Prestes e, logo depois, na Revolução de 30, encontrar-lo-emos desfraldando a bandeira da legalidade contra a derrubada de Washington Luís. Em 1933, no mesmo diapasão, assinará na extinta "Gazeta do Rio" uma série de artigos nos quais seu corrosivo senso de humor se combinará a seu notório conservadorismo. Entre outros temas recorrentes, classificará os militares-políticos de "lobisomens de farda".
Anos mais tarde, já de volta dos combates no fronte italiano da Segunda Guerra Mundial, Castello continuará defendendo, em concorridas palestras na Escola Superior de Guerra, que "lugar de militar é no quartel". Argumentava que, caso desejassem ingressar na política, os oficiais deveriam primeiro abandonar o quepe e o coturno. Pelo mesmo motivo, a todo custo tratará de apagar de sua biografia a assinatura que afixou, em 1954, no "Manifesto dos Generais", documento que servirá de réquiem para o governo de Getúlio, cujo suicídio adiará por exatos dez anos a chegada daqueles mesmos generais ao poder.
O fato de não ser considerado um revolucionário histórico, de ter a "ficha limpa", foi decisivo para que o até então obscuro general Castello se visse alçado ao posto de primeiro presidente do regime militar. Ele soube se utilizar -e deixou que se utilizassem- de sua imagem de moderado e legalista para conferir um verniz pretensamente democrático ao golpe. Ajudou nisso, também, o conceito que desfrutava de ser um "homem culto".
Como nunca possuíra um porte físico avantajado, era ridicularizado pelos atléticos colegas de quartel por ser baixinho, sem pescoço e quase corcunda, Castello procurou se destacar na caserna como um soldado de hábitos culturais refinados, leitor de obras-primas da literatura, amante de música erudita e freqüentador assíduo de teatros e salas de concerto. Assim, paralelamente à consolidação de seu conceito como legalista, construíra para si a mística de militar esclarecido, a antítese do "gorila de farda", imagem costumeiramente associada aos ditadores da América Latina.
Ardiloso, Castello, o "legalista", o "intelectual", articulará em torno de si a crescente onda de insatisfação contra Jango, atraindo para seu modesto sobrado da Nascimento e Silva uma romaria de militares, políticos, donos de jornal, empresários e proprietários rurais. Um grupo nem sempre homogêneo, de ações táticas e interesses nem sempre unívocos, mas ali estrategicamente convergentes. Numa astuciosa inversão de papéis e de sinais, Castello empunhará o discurso de que eles, os golpistas, eram então os arautos da legalidade, identificando ao mesmo tempo na figura de Jango o responsável pela "ameaça às instituições democráticas". O inferno, como sempre, são os outros.
Quarenta anos depois, a figura ambígua de Castello continua a desafiar analistas, historiadores, jornalistas e biógrafos. O general que governou de paletó e gravata é, sem dúvida, o mais desconhecido, o mais enigmático e o mais controvertido na longa galeria dos presidentes que se abancaram no poder após 64. Compreender sua trajetória é compreender, também, boa parte dos sobressaltos que marcaram a vida brasileira no século passado. Do mesmo modo, entender os recuos de seu governo em face da "linha dura" é entender como se deu "a marcha para a ditadura" após a queda-de-braço explícita com Costa e Silva, que se imporá como seu sucessor. Na ocasião, o próprio Castello tratou de espalhar a piada: "O Brasil está trocando um presidente sem pescoço por um outro sem cabeça".

Lira Neto, 40, jornalista, é autor de "Castello: a marcha para a ditadura" (Contexto).


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