São Paulo, quinta-feira, 08 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Um desafio para a América Latina

MARÍA SOLEDAD VALENZUELA

O século 20 foi de múltiplos paradoxos. A humanidade foi capaz dos mais espetaculares avanços científicos e tecnológicos, que mudaram nossa maneira de produzir, de consumir e, em definitivo, de viver. Mas também foi uma das épocas mais violentas e cruéis da história: duas guerras mundiais, mais de mil revoluções, centenas de guerras locais.
Muitas pessoas foram presas, torturadas e mortas em todo o planeta. Fomos testemunhas do uso de armas químicas e atômicas. Temos visto o extermínio de nações inteiras. Tem-se assassinado em nome da religião, por razões políticas e econômicas ou simplesmente pela cor da raça. Estivemos a ponto de criar um mundo sem rosto e sem alma, onde seria possível matar desde lugares longínquos, sem lágrimas.
Na segunda metade do século 20, o mundo mostrou sua expressão bipolar. Estávamos acostumados a falar do Leste e do Oeste, a respeito do mundo livre e de outro, que não o era. Parecia que não havia lugar para estas duas opções simultaneamente, e uma guerra atômica era possível. Enquanto esperávamos, tentando evitar essa terrível guerra, centenas de conflitos surgiam, com armas convencionais, e não pareciam tão cruéis, diante da possibilidade do holocausto final.
Repentinamente, tudo mudou. Acontecimentos hoje suficientemente conhecidos, mas que foram inesperados e espetaculares quando ocorreram, deixaram-nos olhando todos na mesma direção: a maioria das nações do mundo era agora livre para construir suas democracias. Temos sido testemunhas de que alguns países tomaram esta oportunidade para a liberdade, para fortalecer suas diferenças religiosas, étnicas, econômicas e políticas. Temos vivido muitos anos sob a filosofia da Guerra Fria. A política e a economia da paz ainda têm que percorrer um longo caminho para se consolidarem.
Na América Latina, não somente enfrentamos realidades econômicas difíceis, mas devemos avançar muito mais para sermos capazes de manter um diálogo sustentável, para chegarmos a consensos maduros e perduráveis entre atores sociais e políticos, para internalizarmos uma cultura de negociação e de submissão ao Estado de Direito, em definitivo, para consolidarmos nossas instituições democráticas.


É necessário estabelecer prioridades para a reforma política adequada à realidade de cada país


O processo de modernização dos países da região se dá num contexto internacional complexo e desafiante. Três traços desta nova realidade fazem-se sentir, com a deterioração da atividade política e um certo ceticismo quanto à democracia. São eles:
A globalização econômica, que implica decisões e determinações que podem afetar profundamente o desenvolvimento harmônico e a convivência social e que vêm de esferas que transcendem o âmbito nacional e os poderes políticos;
A internacionalização das comunicações, já que o fluxo de informações introduz percepções e valores que podem ser estimulantes, mas que também podem interferir na identidade e na expectativa da população;
A diversificação das demandas sociais, visto que as diferenças socioculturais nas nossas sociedades, resultantes dos elementos anteriores, expressam-se em novas e heterogêneas demandas, não sempre previsíveis nem compatíveis entre si.
Como agem esses fatores nas crises das instituições políticas?
Uma das características centrais do funcionamento da democracia em nosso continente nos últimos tempos tem a ver com os desajustes entre a política e a sociedade. A dificuldade para satisfazer as diversas demandas sociais tem gerado a desconfiança da atividade política, que é vista, muitas vezes, como vinculada ao "assalto ao Estado" para obtenção de privilégios e dividendos pessoais ou de grupos.
Para conseguir a governabilidade democrática, é imprescindível abordar o tema da qualidade da política. Quais são os fatores indispensáveis para impulsionar a governabilidade democrática em nossa região?
Em primeiro lugar, a legitimidade do governo. Esta inclui não somente a geração jurídica ou formal de seu poder, mas também o reconhecimento real e ativo da parte de uma cidadania que o percebe como própria.
São chaves também a representação e a participação. Como a representatividade do sistema político não esgota a democracia, é preciso garantir formas de participação dos diversos setores sociais nos canais de representação dos mesmos, o que conduz ao tema da modernização dos partidos políticos.
O terceiro fator é a relação entre Estado e sociedade civil. Esta é essencial para a cooperação e o resguardo de todos os interesses em uma estratégia concertada de desenvolvimento.
O quarto elemento refere-se à comunicação e à cultura política. Um governo democrático é aquele que constitui a hegemonia, dentro de seu marco programático, em contato com as pessoas, que forma opinião pública e comunica seus planos e prioridades.
O quinto fator é a eficácia do governo. Uma democracia se mede por sua capacidade de solucionar os problemas das pessoas, o que supõe o bom funcionamento dos poderes públicos. Um sexto elemento, que é fundamental considerar, é que a idéia do bom governo se liga à transparência de suas ações. A importância que a comunidade internacional atribui à transparência na ação do Estado tem significado para a grande maioria dos países; se o Estado não lhe oferece atenção suficiente, sua legitimidade se vê debilitada e questionada.
Levando em conta esses fatores, é necessário estabelecer prioridades para a reforma política adequada à realidade de cada país. Se não o fizermos, não haverá possibilidade de construir um projeto histórico de longo prazo, na América Latina, que fortaleça a democracia e convoque a uma tarefa comum a nossas sociedades e, em especial, a nossa juventude. A política deve ser percebida como uma atividade nobre, na qual vale a pena comprometer o melhor de nossas capacidades.
No século 21, a visão ética formará parte integral da governabilidade democrática. É importante que reafirmemos novamente a importância dos valores e das crenças e a firmeza das convicções. Não é que as rupturas e os câmbios não sejam relevantes. Mas seriam fúteis, se não estivessem fundados em crenças e valores que transcendam as circunstâncias históricas. A luta política não pode estar sempre mediada por cálculos ou por estratégia de poder.


María Soledad Alvear Valenzuela, 51, advogada, é ministra das Relações Exteriores do Chile. Foi ministra da Justiça (1994-2000).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Hélio Bicudo: O devido processo em tempos de eleição

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.