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TENDÊNCIAS/DEBATES
A área da saúde deve receber mais recursos públicos para resolver a crise?
SIM
Entre a luva e o anel
LIGIA BAHIA e MARIO SCHEFFER
OS MALES do sistema de saúde
brasileiro têm sido atribuídos
ao financiamento -origem,
volume e destinação dos recursos- e
à gestão dos serviços, perspectivas
quase sempre situadas em campos
adversários.
Prevalece o simplismo tentador de
buscar respostas conjunturais para
problemas que são, de fato, estruturais. É um equívoco escolher entre "a
luva e o anel", optar por uma das dimensões da crise sem escarafunchar
a natureza dos impasses.
Há 20 anos a saúde vem sendo pilhada no Brasil: ficou sem os 30% do
orçamento da seguridade social previstos na Constituição de 88, buscou
empréstimos no FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), assistiu ao desvirtuamento da CPMF e à redução de
outras fontes. A vinculação orçamentária, pela emenda constitucional 29,
pouco atenuou essa instabilidade, devido a ataques impetuosos ao dinheiro da saúde, utilizado para obras de
saneamento, programas populares de
alimentação e outros desvios -sem
contar a falta de parâmetros para o
cálculo dos recursos, para a fiscalização e para o controle das despesas nas
três esferas de governo.
Segundo dados da "World Health
Statistics" (2007), os gastos governamentais com saúde per capita/ano no
Brasil (US$ 157) são muito menores
do que os dos EUA (US$ 2.725) e do
Canadá (US$ 2.121) e estão abaixo dos
da Argentina (US$ 174), do Chile
(US$ 169) e da Costa Rica (US$ 223).
É muito pouco para um sistema
que interna 1 milhão de pessoas por
mês, assiste portadores de HIV, renais crônicos, pacientes com câncer,
realiza a maioria das cirurgias cardíacas, dos atendimentos psiquiátricos,
dos transplantes, assume o sistema
de urgência e emergência, de vacinações, vigilância, prevenção em saúde.
Se é verdade que os recursos são escassos, pululam evidências da relação
entre o mau gerenciamento e os pífios
indicadores de saúde do país. A falta
de planejamento e a inadequada gestão financeira, de pessoas e de materiais comprometem em cheio a gestão
clínica e a assistência.
A má qualidade do gasto público, a
falta de transparência na prestação de
contas, o uso político-partidário de
cargos, a corrupção, a precariedade
do controle social, a prática varejista
das emendas parlamentares, a terceirização via cooperativas e outras organizações, os recursos e os equipamentos públicos que sustentam parte
do mercado de planos de saúde privados, tudo isso diz respeito à forma
conturbada de gestão do SUS.
À iminente regulamentação da EC
29 soma-se o projeto do governo federal das fundações estatais de direito privado, alternativa inovadora à
engessada administração pública direta e autárquica. Alguns recusam o
debate sobre o novo modelo sob a alegação de que a mudança "é para pior";
outros aderem efusivamente à proposta ante a mera alusão de modernidade administrativa. Quem escolheu
dar caráter plebiscitário à discussão
arrisca perder-se em miragens.
Se há consenso sobre a premência
de mudanças institucionais, se há disposição do Ministério da Saúde para
encarar simultaneamente uma agenda de problemas epidemiológicos, financeiros e administrativos, estamos
diante de uma conjuntura favorável
jamais vista. Trata-se da possibilidade de romper o confinamento do setor, de enfrentar os dilemas da saúde
à altura de sua complexidade. A começar por conceder aos hospitais públicos maior autonomia gerencial, financeira e orçamentária, focada em
desempenho e resultados.
As necessidades de saúde dos usuários do SUS nem sempre coincidiram
com as hierarquias estabelecidas pelos gestores, intelectuais e movimento sindical da saúde. Talvez seja o momento de os interesses corporativos
darem ouvidos a quem mais entende
dos problemas intrincados de financiamento e de gestão: a população que
depende do SUS, que não agüenta
mais ver o acesso negado, a rede pública em penúria, a peregrinação em
filas, os prontos-socorros lotados, a
precarização do trabalho dos profissionais que atuam nos serviços.
Passou da hora de o Brasil responder, com ética e compromisso público, à efetivação, na prática, do direito
universal à saúde e à vida.
LIGIA BAHIA, 52, médica, sanitarista, é professora da
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), conselheira do CNS (Conselho Nacional de Saúde) e diretora do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde).
MARIO SCHEFFER, 40, comunicador social, sanitarista,
doutorando em ciências pela Faculdade de Medicina da
USP, é ex-conselheiro do CNS e diretor do Cebes.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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