São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A área da saúde deve receber mais recursos públicos para resolver a crise?

SIM

Entre a luva e o anel

LIGIA BAHIA e MARIO SCHEFFER

OS MALES do sistema de saúde brasileiro têm sido atribuídos ao financiamento -origem, volume e destinação dos recursos- e à gestão dos serviços, perspectivas quase sempre situadas em campos adversários.
Prevalece o simplismo tentador de buscar respostas conjunturais para problemas que são, de fato, estruturais. É um equívoco escolher entre "a luva e o anel", optar por uma das dimensões da crise sem escarafunchar a natureza dos impasses.
Há 20 anos a saúde vem sendo pilhada no Brasil: ficou sem os 30% do orçamento da seguridade social previstos na Constituição de 88, buscou empréstimos no FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), assistiu ao desvirtuamento da CPMF e à redução de outras fontes. A vinculação orçamentária, pela emenda constitucional 29, pouco atenuou essa instabilidade, devido a ataques impetuosos ao dinheiro da saúde, utilizado para obras de saneamento, programas populares de alimentação e outros desvios -sem contar a falta de parâmetros para o cálculo dos recursos, para a fiscalização e para o controle das despesas nas três esferas de governo.
Segundo dados da "World Health Statistics" (2007), os gastos governamentais com saúde per capita/ano no Brasil (US$ 157) são muito menores do que os dos EUA (US$ 2.725) e do Canadá (US$ 2.121) e estão abaixo dos da Argentina (US$ 174), do Chile (US$ 169) e da Costa Rica (US$ 223).
É muito pouco para um sistema que interna 1 milhão de pessoas por mês, assiste portadores de HIV, renais crônicos, pacientes com câncer, realiza a maioria das cirurgias cardíacas, dos atendimentos psiquiátricos, dos transplantes, assume o sistema de urgência e emergência, de vacinações, vigilância, prevenção em saúde.
Se é verdade que os recursos são escassos, pululam evidências da relação entre o mau gerenciamento e os pífios indicadores de saúde do país. A falta de planejamento e a inadequada gestão financeira, de pessoas e de materiais comprometem em cheio a gestão clínica e a assistência.
A má qualidade do gasto público, a falta de transparência na prestação de contas, o uso político-partidário de cargos, a corrupção, a precariedade do controle social, a prática varejista das emendas parlamentares, a terceirização via cooperativas e outras organizações, os recursos e os equipamentos públicos que sustentam parte do mercado de planos de saúde privados, tudo isso diz respeito à forma conturbada de gestão do SUS.
À iminente regulamentação da EC 29 soma-se o projeto do governo federal das fundações estatais de direito privado, alternativa inovadora à engessada administração pública direta e autárquica. Alguns recusam o debate sobre o novo modelo sob a alegação de que a mudança "é para pior"; outros aderem efusivamente à proposta ante a mera alusão de modernidade administrativa. Quem escolheu dar caráter plebiscitário à discussão arrisca perder-se em miragens.
Se há consenso sobre a premência de mudanças institucionais, se há disposição do Ministério da Saúde para encarar simultaneamente uma agenda de problemas epidemiológicos, financeiros e administrativos, estamos diante de uma conjuntura favorável jamais vista. Trata-se da possibilidade de romper o confinamento do setor, de enfrentar os dilemas da saúde à altura de sua complexidade. A começar por conceder aos hospitais públicos maior autonomia gerencial, financeira e orçamentária, focada em desempenho e resultados.
As necessidades de saúde dos usuários do SUS nem sempre coincidiram com as hierarquias estabelecidas pelos gestores, intelectuais e movimento sindical da saúde. Talvez seja o momento de os interesses corporativos darem ouvidos a quem mais entende dos problemas intrincados de financiamento e de gestão: a população que depende do SUS, que não agüenta mais ver o acesso negado, a rede pública em penúria, a peregrinação em filas, os prontos-socorros lotados, a precarização do trabalho dos profissionais que atuam nos serviços.
Passou da hora de o Brasil responder, com ética e compromisso público, à efetivação, na prática, do direito universal à saúde e à vida.


LIGIA BAHIA, 52, médica, sanitarista, é professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), conselheira do CNS (Conselho Nacional de Saúde) e diretora do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde).

MARIO SCHEFFER, 40, comunicador social, sanitarista, doutorando em ciências pela Faculdade de Medicina da USP, é ex-conselheiro do CNS e diretor do Cebes.

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