São Paulo, sexta-feira, 08 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pacto social e New Deal

HÉLIO ZYLBERSTAJN

O Brasil de hoje tem algumas semelhanças com os Estados Unidos dos anos 1930 que merecem ser registradas. Nos Estados Unidos, a crise da Bolsa de Valores em 1929 fez a economia mergulhar em uma profunda depressão, da qual conseguiu sair depois que o governo implementou políticas econômicas que visavam aumentar a demanda agregada. Mais tarde esse receituário -o keynesianismo- foi adotado em todos os países capitalistas.
O conjunto de políticas que resgatou a economia americana ficou conhecido como New Deal. Curiosamente, fazia parte do New Deal a reforma trabalhista. O objetivo da reforma trabalhista estava alinhado com o das demais políticas: aumentar os salários dos trabalhadores e assim contribuir para elevar a demanda agregada da economia.
Como aumentar os salários? A primeira tentativa, em 1932, foi uma legislação que permitia às empresas de um mesmo mercado combinarem aumentos de preço, desde que revertessem as receitas adicionais aos trabalhadores na forma de aumentos salariais.
A lei permitia o conluio e o cartel, desde que os trabalhadores fossem beneficiados. Essa legislação foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte. Em 1935, os legisladores tentaram uma nova fórmula: o aumento dos salários deveria vir pela negociação coletiva. Para implementar a nova estratégia, o New Deal garantiu aos trabalhadores americanos pela primeira vez o direito à organização sindical e à negociação coletiva.
A fórmula funcionou. As grandes corporações aderiram e se ajustaram, pois a negociação coletiva completava o modelo fordista de organização da produção. Pela via da negociação, os trabalhadores conquistaram mais renda, mais benefícios e melhoraram as condições de trabalho. As empresas, por sua vez, viram a produtividade do trabalho crescer continuamente. Durante aproximadamente as cinco décadas que se seguiram ao "Wagner Act", de 1935, o modelo de representação de interesses e de negociação coletiva funcionou. A partir dos anos 80, entrou em crise por diversas razões.


No caso americano, os legisladores e os próprios atores sociais escolheram não criar direitos trabalhistas pela lei


Qual a semelhança com o Brasil da primeira década deste século? Aqui também precisamos sair de um longo período de estagnação. O governo Lula cogita implementar um conjunto de políticas com o objetivo de retomar o crescimento. A reforma trabalhista que está em discussão será parte do pacto social e, provavelmente, enfatizará a revisão da organização sindical por meio da extinção da unicidade sindical e do imposto sindical, bem como abrirá espaço para a representação dos trabalhadores a partir do local de trabalho. Isso visando fortalecer nossos sindicatos para a negociação coletiva. Muito parecido com a receita trabalhista do New Deal.
Cabe a pergunta: Se funcionou por lá, funcionará aqui? E mais: Os fatores que esgotaram o modelo americano estão presentes também aqui?
No caso americano, os legisladores e os próprios atores sociais escolheram deliberadamente não criar direitos trabalhistas pela lei. A lei foi usada basicamente só para fortalecer o direito coletivo, ou seja, o direito à organização sindical e à negociação coletiva. Pela negociação, os trabalhadores alcançariam os direitos individuais. No caso brasileiro, o caminho foi o inverso. Nossos formuladores de políticas sempre preferiram garantir na lei os direitos individuais, e não se preocuparam em equipar os trabalhadores para a negociação coletiva.
Para que a negociação coletiva funcione no Brasil, teremos que lidar com um problema difícil, que os americanos ainda não conseguiram resolver e que causou o esgotamento do seu modelo nos anos 80. Trata-se de fazer conviver a representação de interesses (base da negociação coletiva) com a participação (base da gestão de empresas na economia globalizada). Para ter sucesso, nossa reforma trabalhista deverá criar espaços para estes dois processos, que nem sempre convivem bem.
Um modelo sindical excessivamente baseado na representação pode desencorajar a participação dos trabalhadores, que é essencial para o sucesso da empresa. Por outro lado, um modelo que enfatize apenas a participação pode inibir a explicitação de interesses dos trabalhadores e prejudicar o desempenho da própria empresa, pela redução da produtividade do trabalho.
Não será fácil, e os atores sociais -trabalhadores, empresários e governo- precisarão de muita criatividade e boa vontade para produzir um modelo trabalhista contemporâneo e compatível com o objetivo comum do crescimento econômico para o Brasil.


Hélio Zylberstajn, 56, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e coordenador do Programa Mediar - Informações para a mediação estratégica entre trabalho e capital, da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, da USP).


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