São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

"A mudança chegou aos Estados Unidos"?
(Barack Obama, no 1º discurso após ser eleito)


SIM

O mundo respirou história nesta semana

RENATO JANINE RIBEIRO

A MUDANÇA chegou aos Estados Unidos, disse Obama, na primeira frase de efeito de um discurso repleto de expressões bem escolhidas para entusiasmar o povo.
Quer dizer, a mudança veio de fora.
Quer dizer, os Estados Unidos estavam atrasados. Bush representava o atraso. A Europa, outros países, inclusive o nosso, escolheram a mudança antes deles. No século 19, a liberdade estendia seus braços para acolher no porto de Nova York os mal-amados do velho mundo. A "América" era pioneira. Hoje, com a eleição de seu primeiro presidente negro, os Estados Unidos recebem uma mudança cujos ventos já sopravam em outras partes.
Mais para o fim do discurso, porém, Obama retoma a crença norte-americana de que seu país é líder do mundo, um "povo eleito" moderno: "Esse é o verdadeiro talento da América -a América é capaz de mudar". Sim, a mudança tardou, mas, quando chega lá, o mundo todo muda. A mudança começou em outros países, mas é quando vence na "América" que ela ganha escala e se torna mundial.
Bush, após o 11 de Setembro, para vencer a guerra "contra o terror", rogou a seu povo que consumisse mais, não menos. O usual nas guerras é pedir poupança e sacrifícios, canhões em vez de manteiga. Bush prometeu um Eldorado, só que feito de consumo, e não de valores. Como disse Michael Mandelbaum, seu governo foi um caso único de transferência de riqueza do futuro para o presente. Bush negou tudo o que é positivo nos próprios valores conservadores -austeridade, comedimento, poupança. Dilapidou dinheiro, sangue, fé e esperança. Gastou o futuro. Hipotecou até as vidas de quem ainda não nasceu.
Não sabemos como serão os próximos anos. Obama não prometeu maravilhas. Alertou que haverá atrasos e fracassos. Implicitamente, pregou a poupança, não a dilapidação. E foi depois dessa advertência que desenvolveu sua utopia, sua esperança num país de valores.
Há algo espantoso nisso. Com o avanço da campanha, a oposição entre valores da mudança e da esperança e valores da conservação e do medo foi se convertendo numa oposição entre o candidato dos valores e aquele que herdava a falta de valores.
McCain era o único candidato possível para o Partido Republicano justamente por ser o menos bushista dos republicanos. Mesmo assim, não conseguiu encarnar valores em que, seguramente, acredita. Não convenceu.
É curioso que o partido mais liberal, o dos nova-iorquinos afrescalhados que tomam "capuccino" (que George W. Bush condenou quatro anos atrás, porque não seria o da "verdadeira América"), acabasse sendo o único que sustenta valores. Porque o termo "valores" soa, com freqüência, conservador. Mas esse conservadorismo básico, que representa um compromisso com o país, com sua história, nenhum presidente dos Estados Unidos pode dispensar.
A diferença é que justamente o novo, o negro, o jovem, o candidato da internet (não a internet dos negócios, mas a da cidadania), tenha sido quem expressou os valores -e não o herói de guerra, o prisioneiro torturado no Vietnã, a derradeira reserva moral do Partido Republicano.
O simbolismo dessa vitória é duplo.
Está no fato de que os progressistas conquistaram o legado de uma preocupação ética que muitas vezes foi conservadora. As repercussões disso para a ética pública serão importantes. E também está na esperança despertada, na mobilização dos jovens, dos que votaram pela primeira vez, dos excluídos das urnas. Já em 2004 o governador Howard Dean mobilizara os jovens e usara a internet -mas não conseguiu a indicação democrata.
Dessa vez, a estratégia das "grassroots", da base mobilizada, deu certo.
Ora, quem se mexeu pela mudança não ficará parado em casa. Vai continuar participando. Vai exigir de Obama que ele aja. Não é casual a referência do novo presidente a Martin Luther King, e de seus eleitores à grande marcha dos negros em Washington, há 40 anos. É como se, finalmente, eles chegassem lá.
As pessoas respiraram a história.
Podem até se enganar, mas essa sensação se tem poucas vezes na vida -quando se tem. E ela estava presente nos Estados Unidos -e no mundo- nesta semana. Respiremos fundo. Ela pode não durar. Mas, também, pode.


RENATO JANINE RIBEIRO, 58, é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "A Ética na Política", entre outras obras.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
José Flávio Sombra Saraiva: O dia seguinte não é o bravo mundo novo

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.