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TENDÊNCIAS/DEBATES
É positiva eventual revisão da Lei da Anistia?
SIM
Justiça não é revanchismo
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE
É GROTESCO falar em "revanchismo", ato pessoal de desforra por
ofensa recebida, em referência à
responsabilização dos atos inumanos,
catalogados como crimes de lesa-humanidade, praticados por agentes do
Estado ou pessoas que atuaram com
sua autorização, apoio ou consentimento no período da ditadura instaurada em 1964. Trata-se de tema de Estado, e sua correspondência é justiça.
Acolhido o pleito social e político de
necessidade de construção da democracia, sobreveio a Lei da Anistia, que
reconheceu a injustiça da situação de
fato e da aplicação das leis penais vigentes para os que se opuseram ao regime militar e é exclusiva para aqueles que cometeram crimes políticos e
conexos. Mas ainda não resgatamos a
verdade e a memória nem fizemos
justiça, o que se choca com o ideário
de consolidação do Estado democrático de Direito.
O Programa Nacional de Direitos
Humanos estabelece a modernização
da legislação para a promoção do direito à memória e à verdade, como diretriz. Revisão imprescindível, pois
há muito entulho autoritário, atinente à lei de segurança nacional, aos arquivos secretos etc. No tocante à impunidade dos torturadores, desnecessária a alteração da lei de anistia.
A OAB ingressou em 2008 com
ação para que o STF interprete a lei e
declare que ela não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes
da repressão contra opositores políticos, na medida em que aqueles delitos
não são considerados políticos, tampouco conexos. O processo está com o
procurador-geral da República desde
fevereiro de 2009 e, devolvido, o ministro relator, Eros Grau, poderá colocá-lo em julgamento.
A sociedade clama ao Supremo a
resposta necessária para a construção
da paz. Não aceita a impunidade e não
almeja vindita. Encaminha apelo,
lançado pelo Comitê contra a Anistia
aos Torturadores, assinado, entre outros, por Antonio Candido, Chico
Buarque de Holanda, Aloysio Nunes
Ferreira, Chico Whitaker, Alberto
Silva Franco, Marilena Chaui, Leandro Konder, Hélio Bicudo, Boaventura de Sousa Santos e mais 11 mil pessoas (www.ajd.org.br).
Quer justiça, dentro dos parâmetros da dignidade humana, estabelecidos na Constituição, em convenções e em tratados internacionais.
Os regimes ditatoriais da América
Latina adotaram um sistema penal
paralelo e subterrâneo. Impuseram
penas sem processo, cometeram homicídios, desaparecimentos forçados, torturas, suplícios, sequestros,
crimes sexuais, tudo com requintes
de crueldade.
Para enfrentar esse legado de violência, vários países já compreenderam o sentido do direito penal internacional. Revelam a verdade, resgatam a memória e examinam as violações ocorridas no período ditatorial à
luz da Justiça, e o fazem na perspectiva de que os crimes contra a humanidade protegem bens jurídicos que extrapolam os limites do direito penal
nacional e atinge a comunidade internacional. Atinge a humanidade.
É necessário que o passado de violação e impunidade não continue a
ser o parâmetro do presente para que
possamos consolidar a democracia e,
no futuro, viver em um Brasil que não
abrace a cultura autoritária de violência no seu dia a dia.
Hitler dizia que ninguém se lembrava mais do genocídio de 1,5 milhão
de armênios. Assim tivemos o genocídio dos judeus. Crimes que não atingiram apenas aquelas pessoas e povos, mas toda a humanidade.
Sobre a dor e o sangue deles é que
foram forjadas as normas internacionais que não admitem a impunidade
dos crimes contra a humanidade, que
protegem direitos inderrogáveis acolhidos pelo direito internacional, tratando-se de "ius cogens", normas que
vinculam independentemente da
vontade dos sujeitos da relação jurídica e que todos os países signatários,
como o Brasil, têm a obrigação internacional de investigar e punir -e para
os quais não há anistia ou prescrição.
Afirmar que houve anistia para os
torturadores é ética e juridicamente
insustentável. Fere o patamar civilizatório em que a humanidade se encontra.
Justiça! Já não é sem tempo.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE , juíza de direito em São
Paulo, é co-fundadora e secretária da Associação Juízes
para a Democracia.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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