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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil pode vencer a guerra contra a fome

JACQUES DIOUF


Enquanto grande parte da população passar fome, é ilusório crer que o país atingirá seu pleno potencial de crescimento

O Brasil, sob a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, acertou suas prioridades. Decidiu adotar como alvo erradicar a fome no prazo de quatro anos. Em sua primeira semana à frente do país, o novo governo adiou a aquisição de aviões militares no valor de mais de US$ 700 milhões, para ajudar a cobrir o custo do programa de combate à fome. Os maiores inimigos do Brasil são a pobreza e a fome dentro de suas fronteiras, não as forças ameaçadoras de seus vizinhos.
O Brasil possui uma das maiores disparidades de renda do mundo. Os 20% mais ricos da população ganham 60% da renda nacional, enquanto os 20% mais pobres sobrevivem com menos de 4%. Em 1999, 44 milhões de brasileiros -mais de um quarto da população- viveram na pobreza absoluta, com renda diária inferior a US$ 1,06. Cifras recentes sugerem que esse número já tenha subido para mais de 50 milhões.
Grande parcela dos pobres absolutos gastam praticamente tudo o que ganham com comida e, mesmo assim, não têm o suficiente para comer, especialmente quando têm dívidas. Apesar de o Brasil ser um grande exportador de produtos agrícolas, como café e açúcar, uma parte grande demais de sua população vive esfomeada e subnutrida.
Alguns economistas questionam se o Brasil pode dar-se ao luxo de acabar com a fome, apontando para as enormes dificuldades fiscais que o novo governo enfrenta. Mas, ao eleger Lula com uma maioria tão esmagadora, a população brasileira mostrou que apóia as prioridades dele e está preparada para fazer os sacrifícios necessários.
Na realidade, é provável que nem sequer seja necessário fazer sacrifícios, pois acabar com a fome é do interesse de todos, ricos ou pobres. Para a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a fome é tanto causa da pobreza quanto efeito dela. Enquanto grande parte da população nacional estiver passando fome -sem condições de estudar ou trabalhar bem, além de ter a probabilidade de morrer jovem-, é ilusão pensar que o país atingirá seu potencial pleno de crescimento econômico. Derrotar a fome é não apenas obrigação moral mas também um investimento que, com certeza, gerará retornos realmente altos sobre os valores relativamente modestos envolvidos. Logo, todos serão vencedores na guerra global contra a fome.
Com o lançamento do Programa Fome Zero, o Brasil se posicionou como país-líder nesta guerra, declarada na Cúpula Mundial sobre Alimentação, em Roma, em 1996. É uma guerra que começou com pouca força, mas esperamos que muitos outros países se inspirem no exemplo brasileiro e unam suas forças na Aliança Internacional contra a Fome, lançada na cúpula de junho do ano passado, em Roma.
Os conceitos sobre os quais se baseia o Fome Zero são inteiramente válidos. O programa reconhece que as rendas baixas são a causa principal da fome crônica e, portanto, fornece um suplemento à renda dos pobres, por meio de um sistema de cartão de débito. Para permanecer no programa, seus beneficiários terão de provar que o dinheiro foi gasto com produtos alimentícios básicos e combustível para cozinhar. Além disso, se não forem indigentes, terão de provar que seus filhos vão à escola e que os adultos se matricularam num programa de treinamento para aumentar suas chances de conseguir emprego ou de ganhar sua vida de maneira melhor, desse modo reduzindo sua dependência de assistência futura.
Outra característica inovadora do programa é a intenção de utilizar a demanda adicional por alimentos para estimular o aumento da produção de pequenos agricultores, entre os quais o níveis de pobreza e fome são altos. Desse modo, ajudará tanto os consumidores pobres quanto os pequenos produtores.
O apoio internacional ao Programa Fome Zero já é grande. Antes de o novo governo chegar ao poder, uma equipe conjunta da FAO, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento endossou as metas e os conceitos subjacentes do projeto. Horst Köhler, o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, também manifestou seu apoio ao projeto durante visita que fez ao Brasil em dezembro passado.
Na primeira semana do novo governo, a FAO anunciou a aprovação de três projetos em apoio ao Programa Fome Zero. Todos eles vão ajudar o novo ministro brasileiro da Segurança Alimentar e do Combate à Fome, José Graziano, a traduzir os excelentes conceitos apontados no projeto em ações práticas, no menor prazo possível.
Atendendo convite do presidente Lula, farei uma visita ao Brasil em meados deste mês para realizar consultas com o novo governo sobre as melhores maneiras pelas quais a FAO e a comunidade internacional poderão trabalhar em conjunto para ajudar o Brasil a alcançar sua meta de erradicar a fome no país em quatro anos. Mas também estarei ansioso para ver o que o resto do mundo pode aprender com o exemplo brasileiro e explorar maneiras pelas quais a visão brasileira poderá ser aplicada em outras partes do planeta.
Num mundo em que o setor agrícola consegue mais do que satisfazer as necessidades alimentícias de uma população global que dobrou de 3 bilhões para 6 bilhões nos últimos 40 anos, é absurdo que alguém ainda passe fome. No entanto, cerca de 800 milhões de pessoas não comem o suficiente para terem uma vida plena e saudável. O Brasil está mostrando que, se estivermos realmente decididos a derrotar a fome, essa meta é inteiramente viável e não tem um custo alto demais.

Jacques Diouf, 64, é diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação).
Tradução de Clara Allain.



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