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CARLOS HEITOR CONY
Matéria de memória
RIO DE JANEIRO - Recebo da
editora as provas para a sexta edição de um romance antigo, escrito e
publicado pela primeira vez em
1963. Posso ainda fazer alterações,
mas me limito a suprimir alguns advérbios de modo e a alterar uma ou
outra pontuação. Machado de Assis
fazia melhor, mudava parágrafos
inteiros, como confessa na terceira
edição de "Brás Cubas".
Mesmo assim, fico em dúvida
com certos detalhes. Um dos personagens contrata uma empregada
por 80 mil cruzeiros, moeda da época, que hoje equivaleria, creio eu, a
um e meio salário mínimo. Impossível e inútil atualizar nomes e coisas, como o do avião da Boac que
traz outra personagem a bordo.
Não há mais Boac, virou British Airways, antes era British Overseas
Airline Company, codinome Boac.
O possível leitor de hoje pode estranhar essas quantias e siglas, mas
eram as do tempo em que escrevi o
romance. Não afetam a história -ia
dizer conteúdo, mas dá na mesma.
Pior foi mesmo o agitado clima
político da época. A esquerda já se
considerava no poder. Conheci dois
militantes que já haviam sido convocados pelo Darcy Ribeiro para
ocupar o Ministério da Educação
no governo de Jango. O movimento
militar de 64, que estava a caminho,
era ignorado pelos principais líderes, que tinham como certa a tomada do poder.
Um de meus personagens faz referência a esse clima do "já ganhou"
e quase entra em cana vivendo um
conflito existencial que nada tem a
ver com a situação política. Alguém
me sugeriu uma nota ao pé de página, mas um livro de ficção não deve
comportar esse tipo de esclarecimento. O leitor que compre a história tal como foi escrita, bem ou mal,
não importa.
Uma edição de "Os Lusíadas" teria mais notas ao pé de página do
que texto original de Camões.
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