UOL




São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O Conselho de (in)Segurança?

RICARDO SEITENFUS

Jamais na história do Conselho de Segurança da ONU a opinião pública pôde acompanhar seu processo decisório, de forma intensa e dramática, como na atual crise iraquiana. Estrelas da política internacional contracenam com obscuros diplomatas, sob o olhar aparentemente impassível de Kofi Annan.
Todavia o principal da trama joga-se nos bastidores, nas denominadas consultas informais que acontecem secretamente, distantes do olhar de todos. O que nos é permitido presenciar é tão-somente um jogo de sombras, no qual a retórica confronta-se com a demagogia, posto que os partícipes não representam a ONU, mas os interesses de seus respectivos Estados. Quando não se vislumbra um interesse nacional direto na discussão, barganha-se o voto, como ocorre hoje com um número considerável de membros não permanentes do CS. A plena compreensão do jogo securitário do conselho implica, além do processo decisório, a implementação e a eficácia da decisão adotada.
Quanto ao processo, é necessário obter um duplo sucesso para a adoção de uma resolução. Os membros permanentes (China, EUA, França, Grã-Bretanha e Rússia) não podem se opor, o que lhes concede poder de veto.
Os críticos mais apressados à formação desse pentágono imperial, já que ele reúne o poder real com o direito estabelecido na Carta, não concedem a devida atenção à preocupação dos cinco em premunir-se mutuamente contra as consequências que poderiam advir de uma ruptura da frente aliada. Ora, a Guerra Fria, que dominou a história da ONU, demonstrou que a precaução dos cinco não foi excessiva. Além disso, devem ser conquistados os votos positivos dos Estados-membros não permanentes que permitam alcançar nove num total de 15 votos possíveis.
Uma vez tomada a decisão, é necessário implementá-la. Como o conselho não dispõe de Forças Armadas, ele recorre aos Estados-membros da ONU, que conservam a possibilidade de recusar a solicitação. Portanto uma decisão de agir pela força não implica, necessariamente, ação concreta.
Três concepções opostas digladiaram-se quando da formatação do atual sistema. A vencedora apóia-se numa percepção nacionalista das relações internacionais. Para ela, a ONU não pode se divorciar da realidade do poder. Não é por que ao conselho cabe a função de manter a paz e a segurança internacionais que as potências são seus membros; é por elas serem seus membros que ele desempenha essa função.


Do poder político que se expressa no CS não podemos aguardar outra resposta a não ser de natureza política


A segunda concepção defende genericamente a democratização do CS, na medida em que a própria Carta da ONU reconhece o princípio da igualdade soberana de todos os seus membros (art. 2.1). As atuais pressões, inclusive brasileiras, para pôr um termo ao suposto anacronismo do conselho decorrem de uma percepção idílica das relações internacionais que se torna patente na atual crise iraquiana.
Como denotam as iniciativas bélicas da dupla Bush-Blair, caso as potências não possam defender o que consideram seu interesse nacional no âmbito do sistema multilateral, elas o farão à margem dele. O dilema que se apresenta entre a manifestação do poder dos fortes e a adoção de medidas supostamente democráticas, no entanto desprovidas de instrumentos de implementação, pode conduzir o sistema a um impasse. Em outras palavras, no atual estágio da humanidade, o que é mais benéfico: um sistema injusto, pois calcado na realidade do poder internacional, ou um sistema justo, revelador da vontade da maioria, embora inaplicável?
A terceira concepção da organização internacional resolve este permanente dilema. Em 1944, o jurista Hans Kelsen sustentou que somente um órgão jurisdicional afastado do poder político dos Estados poderia reorganizar as relações internacionais. Em situação conflituosa é necessário diferenciar três dimensões: o juízo sobre a existência ou não de uma infração à ordem internacional; existindo um delito, o juízo sobre qual sanção será aplicada ao Estado faltoso; o juízo sobre quem aplicará e em que condições será aplicada tal sanção.
A primeira e fundamental indagação somente pode ser respondida por uma corte independente composta por juízes, designados segundo sua competência. Do poder político que se expressa no CS não podemos aguardar outra resposta a não ser de natureza política. Este projeto designava a Corte Internacional de Justiça (CIJ) como o órgão adequado para resolver os litígios internacionais. Todavia não somente a pauta da CIJ resume-se a assuntos marginais, como, sobretudo quando provocada para indicar os limites nos quais o conselho deveria atuar, ela declarou que o seu caráter político impedia qualquer controle.
O Conselho de Segurança é, ao mesmo tempo, legal e ilegítimo. Tendo por testemunha a opinião pública, a crise iraquiana desnuda os dilemas da atual organização internacional, evidenciando seu caráter precário e primitivo.


Ricardo Antonio Silva Seitenfus, 54, doutor em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é professor titular do Departamento de Direito e no mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Cristovam Buarque: A revolução republicana

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.