São Paulo, terça-feira, 09 de março de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Dois países

Havia no século 19 dois países cujas histórias tinham sido semelhantes. Essas duas nações, entretanto, divergiram.
Chamemos uma delas de protoneoliberal; logo ficará clara a justificativa da alcunha. Nesse país as elites do poder, do dinheiro e da cultura acreditavam que o progresso exigia convergência com as instituições e as práticas das nações mais adiantadas. A técnica para atrasado avançar era -supunham- imitar o que dera certo em países ricos e poderosos. Daí a veneração com que recebiam as fórmulas que emanavam da potência predominante daquela época, a Grã-Bretanha, desde que sua execução não lhes exigisse o sacrifício de seus interesses. Abraçavam o livre comércio absoluto. A tarefa do Estado era resguardar o direito de propriedade, abrir estradas e, se sobrasse receita, prover a instrução pública. Democracia só lenta, gradual e segura: para não despertar expectativas populares incapazes de serem satisfeitas nem substituir estadistas por demagogos. Vigia uma política de salão.
O outro país era muito mais, digamos, "nasserista". Nele os quadros dirigentes e os ideólogos mais influentes partilham do pressuposto de que nenhuma instituição ou prática estabelecida alhures podia prestar. Se prestasse teria sido inventada ali mesmo, não no estrangeiro. Queriam começar tudo de novo. A associação de qualquer proposta econômica ou política com a Grã-Bretanha bastava para suscitar a suspeita de ser ela instrumento de subjugação. Adotavam protecionismo radical com o mesmo fervor com que o país protoneoliberal seguia a cartilha do livre comércio. Em suas décadas iniciais de vida independente esse país foi governado por grupos que insistiam em mobilizar, em marcha forçada, por meio de alianças entre o poder público e a iniciativa privada, os recursos nacionais para o desenvolvimento. A política -cheia de briga e balbúrdia- misturava elitismo com populismo. Apesar da concentração da riqueza, os populistas conseguiram democratizar a agricultura e as finanças; aboliram os grandes bancos.
O país protoneoliberal era o Brasil; o país "protonasserista", os Estados Unidos. Não há na história moderna duas nações enormes com origens tão parecidas como essas duas, fundadas no hemisfério ocidental sobre a base de povoamento europeu e de escravidão africana. De todas as divergências de rumo e de destino entre as duas, a mais importante é o contraste de atitude que minha fábula descreve.
A lição a depreender não é que devamos copiar a letra do que fizeram os americanos no século 19; cada tempo com suas tarefas e com seus meios para cumpri-las. A lição é que na história dos povos a obediência -sobretudo a obediência intelectual- não compensa. É ser tigre ou ser tapete. Para ser tigre, não basta rugir e mostrar garras; é preciso ter certa idéia de si. Há mais de 20 anos -20 anos de estagnação e desencanto- prevalece no Brasil o discurso do "dever de casa", o catecismo do aluno passivo e submisso. Regredimos às abdicações do século 19.
Cada terça-feira, neste espaço, proponho. Que futuro podem ter tais propostas se não houver entre nós levante de espíritos? Perseveremos, até que a indignação, a esperança e a clareza se encontrem.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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