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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Dois países
Havia no século 19 dois países
cujas histórias tinham sido semelhantes. Essas duas nações, entretanto, divergiram.
Chamemos uma delas de protoneoliberal; logo ficará clara a justificativa
da alcunha. Nesse país as elites do poder, do dinheiro e da cultura acreditavam que o progresso exigia convergência com as instituições e as práticas
das nações mais adiantadas. A técnica
para atrasado avançar era -supunham- imitar o que dera certo em
países ricos e poderosos. Daí a veneração com que recebiam as fórmulas
que emanavam da potência predominante daquela época, a Grã-Bretanha,
desde que sua execução não lhes exigisse o sacrifício de seus interesses.
Abraçavam o livre comércio absoluto.
A tarefa do Estado era resguardar o direito de propriedade, abrir estradas e,
se sobrasse receita, prover a instrução
pública. Democracia só lenta, gradual
e segura: para não despertar expectativas populares incapazes de serem satisfeitas nem substituir estadistas por
demagogos. Vigia uma política de salão.
O outro país era muito mais, digamos, "nasserista". Nele os quadros dirigentes e os ideólogos mais influentes
partilham do pressuposto de que nenhuma instituição ou prática estabelecida alhures podia prestar. Se prestasse teria sido inventada ali mesmo, não
no estrangeiro. Queriam começar tudo de novo. A associação de qualquer
proposta econômica ou política com a
Grã-Bretanha bastava para suscitar a
suspeita de ser ela instrumento de
subjugação. Adotavam protecionismo radical com o mesmo fervor com
que o país protoneoliberal seguia a
cartilha do livre comércio. Em suas
décadas iniciais de vida independente
esse país foi governado por grupos
que insistiam em mobilizar, em marcha forçada, por meio de alianças entre o poder público e a iniciativa privada, os recursos nacionais para o desenvolvimento. A política -cheia de
briga e balbúrdia- misturava elitismo com populismo. Apesar da concentração da riqueza, os populistas
conseguiram democratizar a agricultura e as finanças; aboliram os grandes
bancos.
O país protoneoliberal era o Brasil; o
país "protonasserista", os Estados
Unidos. Não há na história moderna
duas nações enormes com origens tão
parecidas como essas duas, fundadas
no hemisfério ocidental sobre a base
de povoamento europeu e de escravidão africana. De todas as divergências
de rumo e de destino entre as duas, a
mais importante é o contraste de atitude que minha fábula descreve.
A lição a depreender não é que devamos copiar a letra do que fizeram os
americanos no século 19; cada tempo
com suas tarefas e com seus meios para cumpri-las. A lição é que na história
dos povos a obediência -sobretudo a
obediência intelectual- não compensa. É ser tigre ou ser tapete. Para
ser tigre, não basta rugir e mostrar
garras; é preciso ter certa idéia de si.
Há mais de 20 anos -20 anos de estagnação e desencanto- prevalece no
Brasil o discurso do "dever de casa", o
catecismo do aluno passivo e submisso. Regredimos às abdicações do século 19.
Cada terça-feira, neste espaço, proponho. Que futuro podem ter tais propostas se não houver entre nós levante
de espíritos? Perseveremos, até que a
indignação, a esperança e a clareza se
encontrem.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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