São Paulo, terça-feira, 09 de março de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Mindlin e a USP

JACQUES MARCOVITCH


A cultura brasileira está de luto com a morte de José Mindlin, cujo nome está inscrito entre o dos maiores beneméritos da USP


A CULTURA brasileira está de luto com a morte de José Mindlin. Essa ausência é particularmente sentida na USP, que muito em breve abrigará o seu legado mais valioso, a coleção Brasiliana, formada por ele e sua mulher, Guita, durante a vida inteira. O prédio destinado a hospedar a biblioteca no campus da capital está em fase final de construção.
Lamenta-se não ter podido o seu generoso doador ver prontas as instalações e convertido em realidade um sonho de tantos anos.
Trata-se de obra arquitetônica em harmonia perfeita com o raro conteúdo a ser guardado. Quem a visita desde agora percebe que ela se compara -ou até supera-, em beleza e funcionalidade, com as melhores referências congêneres de universidades americanas ou europeias. É uma viva referência de parceria público-privada, reunindo a USP e grandes empresas mobilizadas pela família Mindlin.
Em véspera do novo milênio, como reitor da instituição, numa tarde memorável, o autor destas notas ouviu do próprio José a decisão de transferir, ainda em vida, o grande acervo para o campus do Butantã.
Imediatamente o nobre propósito foi comunicado ao Conselho Universitário e se iniciaram providências para formalizar a doação.
A Comissão de Legislação e Recursos e a Comissão de Orçamento e Patrimônio aprovaram a agilização nos termos propostos pela reitoria, para atingir, com a urgência possível, uma das metas culturais de maior alcance na academia, desde sua fundação.
Nas gestões seguintes, dos professores Adolpho José Melfi e Suely Vilela, cumpriram-se todos os ritos jurídicos e administrativos e, finalmente, no decorrer de 2010, o prédio da Brasiliana, com os seus tesouros literários, será concluído e inaugurado pelo reitor João Grandino Rodas.
No ano 2000, Mindlin integrou o Conselho Consultivo da USP com Emilia Viotti, Alain Touraine, Jennifer Sue Bond, Lygia Fagundes Telles e Olavo Setúbal. Na sessão inaugural, ele abordou o tema da integração universidade-sociedade pela via do conhecimento tecnológico. Seguem duas de suas reflexões: "(...) Gostaria de repetir a preocupação da professora Jennifer Sue Bond sobre o contato com a indústria.
Como empresário, sempre procurei contato com várias universidades para pesquisas conjuntas. Isso ainda não era usual, mas se revelou perfeitamente possível e, aliás, mutuamente proveitoso. (...) Lygia Fagundes Telles mencionou Saramago, de quem por sinal sou amigo, como um grande pessimista, assim como ela própria.
Ora, eu, pelo contrário, sou um grande otimista e gostaria de ser 20 ou 30 anos mais moço para ver o Brasil daqui a 20 ou 30 anos. O país viveu até agora em compartimentos estanques, com cada grupo, cada setor, vivendo a sua própria vida, sem real comunicação. Todos têm que colaborar em tudo, a setorização não pode continuar a existir, e isso se aplica também à universidade."
Essa sempre foi uma grande preocupação de Mindlin. Em outro debate acadêmico, convidado a falar como empresário, declarou que também se preocupava com os destinos da universidade na condição de cidadão e possível usuário de seus produtos. A sua visão extrapolava o quarteto indústria/comércio/agricultura/serviços, incluindo os setores de pesquisa básica ou aplicada, indispensáveis ao desenvolvimento do país.
Muito já se disse a respeito do leitor e bibliófilo que o Brasil acaba de perder. Difícil não pensar, na hora triste em que se ausenta do mundo conhecido, na frase de Jorge Luis Borges: "Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca".
Tratando de livros em textos diversos, José também se distinguiu na arte da escrita. Em catálogo com algumas das raridades de sua biblioteca, escreveu: "Muitas que desejavam ser expostas não foram incluídas..., mas não havia remédio, e tanto elas como eu tivemos de nos conformar".
Lembro-me de um fórum sobre o respeito da academia pelo livro, sem dúvida o mais poderoso instrumento de cultura já concebido pelo homem.
O professor Antonio Candido citou Valery Larbaud, que, em título de uma de suas obras, chamou a leitura de "vício sem punição". Vício, segundo Candido, que leva os indivíduos a criar "uma vida dentro da vida", orientada para a fruição dos textos e das bibliotecas.
Foi o caso de José Ephim Mindlin em sua longa e feliz existência. O seu nome está inscrito, para sempre, entre o dos maiores beneméritos da Universidade de São Paulo.


JACQUES MARCOVITCH, 63, é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-reitor da universidade.

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