São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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Antônio Madureira

ARIANO SUASSUNA

O Quarteto Romançal, que se apresentou no Sesc, em São Paulo, na última sexta-feira, não é uma repetição do Quinteto Armorial: representa, na verdade, um aprofundamento, uma ampliação, um rigor ainda maior em relação às propostas do grupo que o antecedeu.
O Quinteto Armorial foi organizado (também sob a direção de Antônio Madureira) com base na estrutura do "terno" de Mestre Ovídio, composto por dois pífanos e duas rabecas. Por isso, posteriormente, além da flauta, do violino e do violão, ganharam lugar, no Quinteto, a rabeca, a viola brasileira e o marimbau. Mas, em texto de 1977, eu já advertia: tudo aquilo tinha apenas um caráter didático inicial. Era, como eu afirmava, "um modo, digamos assim, de reeducar os nossos músicos", encaminhando-os a um som brasileiro e novo, "a um despojamento, a uma pureza, a uma estrutura musical que os afastasse dos padrões convencionais europeus".
O Quarteto Romançal configura, assim, um passo importantíssimo naquela direção esboçada 20 anos atrás. Cumprida a fase didática inicial, o novo grupo pôde partir agora para instrumentos tradicionais como o violino, o violão, a flauta e o violoncelo, os quais, de modo acessível até a intérpretes não-brasileiros, são perfeitamente aptos a executar a música que naquele ano eu sonhava "cortante, despojada, forte, embriagadora e reluzente como as visagens e ilumiaras de pedra que, ao chegar aqui, os portugueses encontraram, espalhadas por quase todo o território do novo país, pintadas ou insculpidas em pedra pelos antepassados dos nossos índios".
Sempre afirmei que o objetivo procurado pelos integrantes do Movimento Armorial era a criação de uma arte brasileira erudita baseada nas raízes populares da nossa cultura. É esse o caminho que o Quarteto Romançal continua e aprofunda, no campo da música. Um caminho que se torna possível na medida em que, como compositor, o próprio Antônio Madureira reaparece agora com pleno domínio dos seus meios de expressão.
No Brasil, como acontece em todos os países que ainda têm um povo, os caminhos que existem para que um artista exercite seu poder criador são de uma riqueza e multiplicidade verdadeiramente impressionantes. O Quinteto da Paraíba, integrado por três brasileiros e dois chilenos, já mostrou, num disco gravado na Inglaterra, que um grupo tradicional de câmara pode tocar perfeitamente a música armorial. É por isso que o Quarteto Romançal significa um outro passo adiante; com a vantagem de ter à sua frente um compositor como Antônio Madureira e de contar com intérpretes do quilate de Aglaia Costa, Sérgio Campelo e João Carlos Araújo.
A onda de divulgação e de mau gosto que atualmente ameaça o Brasil é tão poderosa quanto no resto do mundo. Se ela não conseguir sufocar e esmagar a criação, ora marginalizada, dos verdadeiros artistas, o Quarteto Romançal e a obra de Antônio Madureira entrarão para o concerto universal da música de todos os países -fraternalmente una em sua rica variedade- com a nota mais marcadamente brasileira e pessoal que possuímos atualmente. Então, um russo, um francês e um romeno poderão ouvi-la com a mesma encantação, com a mesma alegria com que nós, brasileiros, ouvimos Stravinsky, Erik Satie ou Bela Bartok. Porque, na minha opinião, a música de Antônio Madureira tem, para o Brasil, a mesma importância que a gravura de Gilvan Samico, o romance de Guimarães Rosa e a poesia de João Cabral de Melo Neto.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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