São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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Os vietcongues estão ganhando


Estamos de volta à Idade Média, quando os campos estavam entregues aos violentos


RUBEM ALVES

Num jogo de futebol, faltas são ações proibidas. Mas as próprias regras do jogo dizem que, a despeito das proibições, elas acontecerão inevitavelmente. É por isso que as regras prevêem punições. O juiz é o olho que vê e pune as faltas. Os jogadores cometem faltas sempre na esperança de que o juiz não as veja; tentam enganá-lo. Cometida a falta, eles levantam os braços como que dizendo: "Não aconteceu nada. Sou inocente". Mas, quando o juiz apita, todo mundo pára confessando sua submissão às regras.
Crimes, numa sociedade, são ações proibidas. No entanto, eles são inevitáveis. São as próprias leis que os proíbem que afirmam sua inevitabilidade ao estabelecer penas para os mesmos. O futebol convive bem com as faltas: elas são parte da normalidade e da emoção do jogo. As sociedades convivem bem com os crimes: eles têm até um charme e um mistério que excitam a imaginação. É desse mistério e charme que surge a literatura de suspense, os Sherlock Holmes e Hercules Poirot que fascinam pela sua inteligência.
Os crimes que fazem parte da normalidade da vida social são, via de regra, motivados por impulsos emocionais individuais: amor, cobiça, dinheiro, vingança, fúria repentina. Os crimes, na medida em que ocorrem dentro da normalidade da vida social, não colocam a ordem social em perigo. Policiais, com suas armas e cassetetes, promotores, advogados, juízes, tribunais, julgamentos, penitenciárias constituem, na sua totalidade, rituais pelos quais a sociedade mastiga, digere e expele o ato proibido.
Imagine agora essa situação impossível: o juiz apita uma falta, mas o jogador prossegue como se nada tivesse acontecido. O juiz apita de novo. O jogador continua a sua corrida, cometendo outras faltas, até passar a bola para um companheiro que a agarra com a mão entrando com ela no gol. "Gol!", gritam os jogadores do time. O juiz apita enfurecido. Expulsa de campos os jogadores desordeiros. Eles o ignoram e não obedecem.
Nesse caso, não houve falta. A falta só existe se os jogadores acatam as regras. Ao ignorar o apito do juiz, os jogadores ignoraram a ordem do jogo. O que eles fizeram foi dizer: "Não aceitamos as regras. Fazemos as nossas próprias regras!". O jogador que fez a falta e acatou o apito do juiz tentou apenas fazer uma trapaça, mas os jogadores que ignoraram as regras não trapacearam. Não tentaram enganar o juiz; negaram as regras: subverteram a ordem do jogo, acabaram com ele.
Santo Agostinho observou que os criminosos, enquanto criminosos isolados, estão sob o domínio da ordem. Mas, se eles aumentarem em número, se organizarem e ocuparem territórios, deixarão de ser criminosos e se transformarão num Estado com leis próprias, não por passarem a agir com justiça, mas porque à sua injustiça se acrescentou a impunidade. Quando isso acontece, seus atos deixam de ser crimes, resultado de impulsos individuais, e passam a ser uma estratégia militar racional conjunta de ação, cujo objetivo é a pilhagem. Transformam-se numa empresa com objetivos econômicos. Não são mais criminosos, são subversivos cujo propósito é destruir uma ordem social.
É o caso da violência que assola o país. Era costume explicar os crimes como decorrência da miséria, produto de estruturas sociais injustas. Mas hoje a violência urbana não é ação de miseráveis famintos; é ação de organizações ricas, racionais, poderosas, portadoras das armas mais modernas e que agem com uma lógica militar. Eles se riem dos apitos do juiz... Não se trata mais de crime, trata-se de subversão.
Crimes individuais são digeridos pela ordem social. A subversão é diferente: é ela que digere a ordem social. A evidência disso é que vivemos sob o império do medo. Três amigos meus já foram mortos. Não me atrevo a sair do meu consultório, ao fim de um dia de trabalho. Tenho medo. Examino atentamente a rua. Procuro tipos suspeitos. Esse medo em relação ao mais banal dos direitos, o direito de andar pelas ruas, significa que a cidade já não se encontra sob o domínio da ordem. Ela foi invadida por um exército inimigo que ataca a qualquer momento.
Os ataques são repentinos, nos lugares mais imprevistos; tática militar de guerrilha. São inúteis os condomínios-fortalezas com seus seguranças. Seguranças servem para impedir a entrada de mendigos, de vendedores e de cães vadios. Eles são impotentes diante dos grupos armados. Estamos de volta à situação da Idade Média, quando os campos estavam entregues aos violentos e a segurança só se conseguia em castelos fortificados e mosteiros.
Os militares, nos tempos da ditadura, convencidos de que havia um processo de subversão da ordem em andamento, desenvolveram uma inteligência estratégica que levou ao aniquilamento daquilo que se considerava subversão. Isso foi feito porque se considerava que estávamos em guerra. Mas a situação que vivemos hoje é infinitamente mais grave. Ainda não percebemos, mas o fato é que estamos em guerra. Pergunto: por que é que a inteligência militar não desenvolveu estratégia e táticas para pôr fim a essa situação, tal como o fez nos tempos da ditadura? Estamos em guerra! A ordem social está em perigo!
A condição fundamental para a vida social civilizada é a segurança: ausência de medo, tranquilidade para andar a pé pelas ruas, vidros dos carros abertos, olhos tranquilos, que não precisam estar todo o tempo procurando sinais de perigo. O restabelecimento da segurança é, assim, o maior desafio com que se defronta a sociedade brasileira.
Mas guerra de guerrilha não se vence apenas com potencial de fogo. Os vietcongues derrotaram o exército norte-americano. No Brasil, por enquanto, os vietcongues estão levando a melhor.


Rubem Alves, 66, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Entre a Ciência e a Sapiência: o Dilema da Educação" (Edições Loyola), entre outras obras.




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