São Paulo, segunda-feira, 09 de abril de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Emenda 3 atenta contra Estado de Direito

MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA

A emenda 3 constitui um empecilho na difícil tarefa de reconstrução do Estado brasileiro. Implica retrocesso social sem precedentes

NO ESTADO democrático de Direito, a todos os poderes e seus agentes são dadas atribuições para a defesa da coisa pública. O Poder Executivo tem como dever a manutenção da legalidade, atuando sem a necessidade de ser provocado. Se há legislação prevendo as conseqüências decorrentes da não-formalização da relação de emprego, havendo a violação, nada mais óbvio que o agente fiscal de imediato faça incidir a lei.
A análise do ato ilegal e a sua punição não são prerrogativas prioritárias apenas do Poder Judiciário -quedando inerte, a autoridade fiscal atenta contra o princípio da legalidade e se sujeita a penas funcionais.
O Judiciário atua mediante provocação, mas esta é desnecessária no caso da administração. É indispensável viabilizar que o Estado-Executivo atue de ofício diante da ilegalidade constatada. A necessidade de prévia manifestação do Poder Judiciário sobre a existência da relação de emprego, pretendida pela emenda 3, atenta contra essa lógica básica do Estado de Direito.
Estranhas ainda as motivações da emenda: livre iniciativa, liberdade contratual plena e competência exclusiva da Justiça do Trabalho.
A livre iniciativa não é valor absoluto, devendo ser ponderada. A Constituição, quando a menciona, o faz combinando-a com a dimensão social do trabalho e ressaltando sua finalidade de assegurar a todos uma existência digna. Já o Código Civil, citado nos considerandos, não prega a liberdade contratual plena, e sim que esta será "exercida em razão e nos limites da função social do contrato".
Por fim, a competência da Justiça do Trabalho exclui apenas a dos outros ramos do Judiciário nas matérias indicadas na Constituição Federal. Impossível mencionar que tais atribuições afastam a atuação administrativa do Executivo diante de ilegalidades perpetradas, como no caso de ausência de relação de emprego na forma da CLT.
Verificada a ilegalidade e ocorrente a autuação, a empresa tem o direito de defesa nas vias administrativa e judicial. Não há, no modelo atual, prejuízos às empresas. Mais nefastos, no entanto, os efeitos da emenda.
a) Quebra do pilar da atual política do combate ao trabalho escravo, já que a autoridade fiscal do trabalho não poderá tomar nenhuma medida imediata contra a ausência de relação de emprego, aqui patente. Atualmente, acompanhadas, nos rincões do Brasil, pela Polícia Federal, as autoridades fiscais do trabalho têm tido papel fundamental no combate ao trabalho escravo, identificando e autuando as situações irregulares.
b) Imposição de um ônus excessivo ao empregado, que não poderá mais contar com a imediata diligência do Estado diante dos abusos nas relações de emprego.
c) Diminuição da receita estatal, com perdas decorrentes da imposição de penalidades administrativas por quebra de obrigações trabalhistas e provenientes do não-recolhimento previdenciário. Não havendo, ainda, norma sobre a suspensão da exigibilidade do crédito fiscal, enquanto não for ajuizada a ação trabalhista, há o temor da decadência do direito de o Estado constituí-lo. Não proposta a demanda, ocorrerá a extinção do crédito fiscal por inércia estatal. Aliás, é de estranhar que se possibilite tamanha perda de receita pelo Estado, proporcionando aumento do déficit público, tão combatido em questões como a reforma da Previdência Social.
d) Criação de um precedente perigoso a futuras atuações de ofício da administração.
A emenda 3 constitui um empecilho na difícil tarefa de reconstrução do Estado brasileiro. Como estudioso dos direitos sociais, verifico que implica retrocesso social sem precedentes na vida brasileira. Como cidadão, registro, satisfeito, a movimentação de entidades como a Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) contra a emenda e constato, esperançoso, que o seu veto representou o reencontro do presidente Lula com as suas origens.
O Brasil espera poder estender o agradecimento, que se faz ao chefe do Executivo, aos senhores congressistas, responsáveis, agora, pela manutenção do veto e pelo definitivo afastamento das disposições dessa emenda que assombra o país.


MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA, 42, doutor e livre-docente pela USP, é juiz federal em São Paulo, professor e chefe do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP.

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