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São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2003

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BORIS FAUSTO

A fala incontida

As alianças políticas, sobretudo as ditadas por razões de estrita conveniência, podem ter um alto preço. Vejam o caso do industrial José Alencar, que o hoje presidente Lula atraiu para sua chapa, como vice-presidente.
As vantagens eleitorais do acordo eram óbvias. Por meio dele, o PT dava mais um passo para reduzir os temores provocados pelo ascenso de seu maior líder junto a certos círculos de elite, selando um acordo ao mesmo tempo prático e simbólico. O nome do então senador Alencar encarnava a ressurrecta burguesia nacional, atraindo também um ponderável contingente de votos do eleitorado mineiro.
Mas, eleito vice-presidente, o ex-senador passou a correr em faixa própria, culminando com as seguidas e estridentes críticas à opção pelos juros altos, assumida pelo governo Lula ainda em seus primeiros meses. A insistência nessa tecla vem acompanhada da tentativa de desacreditar os responsáveis diretos pela política econômica -velha técnica que insinua o propósito de evitar a confrontação aberta com o presidente da República.
Não se trata de afirmar que a opção governamental pela ortodoxia econômico-financeira, neste início de mandato, paire acima de críticas. Se o caminho seguido -que não se reduz à taxa de juros- parece a muita gente o mais correto, seria inadequado convertê-lo em dogma, recusando a discussão de outras alternativas, apontadas na acesa discussão sobre os rumos do país. Quando mais, não fosse porque temperar o caldo de nossas convicções com alguma dose de dúvida costuma ser um antídoto eficaz contra a teimosia dos grandes erros.
Trata-se, na verdade, de criticar a incompreensão que o vice-presidente José Alencar revela das responsabilidades e limites do cargo que ocupa, assim como o viés assumido no conteúdo de suas falas. O primeiro aspecto já foi ressaltado por mais de um analista na semana que passou, lembrando as responsabilidades do vice-presidente como integrante do governo e substituto presidencial. Aliás, estamos longe dos tempos da Constituição de 1946, em que era possível eleger presidente de um partido e vice de outro; possibilidade que deu origem a problemas como o da dupla inusitada Jan-Jan (Jânio e Jango), alçada ao poder.
Quanto ao segundo aspecto, ao afirmar que a fixação da taxa de juros é uma opção política, e não técnica, o vice-presidente encaminha o debate para um terreno escorregadio. Sempre será possível sofismar, dizendo que a política econômica faz necessariamente parte da política, coisa que ninguém ignora. Porém ao bom entendedor não escapa o fato de que a crítica às decisões técnicas vem engrossar o caldo daqueles que querem desfazer o significativo trabalho de construção institucional realizado nos últimos anos. Nele se inclui a consolidação de um Banco Central que goza, na prática, de autonomia operacional.
No caminho da construção institucional ocorreram falhas e inconsistências, mas seu legado de racionalidade é irrecusável. Vamos apagar tudo isso em nome de uma visão imediatista, da chamada vontade política, rótulo conveniente para a reintrodução de práticas que imaginávamos superadas?


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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