São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001

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OUSAR PENSAR

O efeito mais perverso causado pela absoluta hegemonia que o ideário neoliberal exerceu nos últimos anos, em especial na América Latina, talvez não tenha sido econômico (refletido no medíocre crescimento da região) nem social (pobreza e desigualdade permanecem em patamares insustentáveis).
Talvez o pior de tudo tenha sido uma espécie de ditadura cultural, na forma de imposição do que os franceses gostam de chamar de "pensamento único".
Qualquer um que ousasse propor algo que não seguisse o receituário neoliberal era logo desqualificado como "jurássico", "ultrapassado" ou com rótulos ainda mais agressivos.
Proibiu-se, por exemplo, pensar em moratória na dívida externa. Qualquer país que tentasse esse caminho seria excluído da comunidade planetária e cairia em um inferno econômico sem saída, dizia o "pensamento único".
É verdade que a moratória deve, de fato, ser evitada até o último dos limites, porque seus efeitos costumam ser realmente negativos. Mas, em circunstâncias extremas, pode não haver outro caminho. E o caso da Rússia demonstra que a moratória nem sempre provoca o desastre que os pregoeiros liberais antevêem.
A Rússia foi à moratória em 1998 e nem por isso deixou de crescer fortemente em 1999 (5%) e explosivamente (8%) no ano passado.
Moratória deixou de ser palavra demonizada até mesmo pelo Tesouro norte-americano, que a sugeriu para o outro caso extremo, o da Argentina, que não conseguirá sair da crise sem uma renegociação supostamente voluntária de sua dívida externa de US$ 128 bilhões.
É sempre bom frisar que calote não é instrumento a que se recorra alegremente ou por motivos ideológicos para vingar-se do "imperialismo malvado" ou dos "capitalistas usurários". Mas, como recurso de última instância, não pode ser desprezado só porque ofende o ideário liberal.
Tome-se outro exemplo, a chamada "Tobin tax", um imposto sobre transações financeiras que cruzam fronteiras proposto pelo Prêmio Nobel de Economia norte-americano James Tobin. A proposta sempre foi tida como heterodoxa e inaceitável por interferir na liberdade dos mercados. Agora, está na agenda da reunião dos ministros de Finanças da União Européia, prevista para os dias 22 e 23 na Bélgica.
Mais: ganhou respaldo de um político da maior importância e insuspeito de inclinações "jurássicas", o primeiro-ministro alemão, Gerhard Schröder, que recentemente atacou "a especulação financeira que leva economias inteiras à ruína".
Registre-se que o presidente Fernando Henrique Cardoso disse mais de uma vez coisas semelhantes sem o menor eco internacional, talvez por ser uma voz do mundo pobre, ainda que afinada com o liberalismo.
Fique claro que não se trata de recomendar nem a moratória nem a introdução imediata da "Tobin tax". Trata-se simplesmente de rejeitar a ditadura do "pensamento único" e de defender um bem supremo da humanidade, a liberdade de pensar, a liberdade de ousar.


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