São Paulo, quarta-feira, 09 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um santo para o nosso tempo

EUGENIO CARLOS CALLIOLI

É algo muito humano procurar modelos de vida. Já Petrarca, no século 14, aconselhava: "Seguite i pochi, e non la volgar gente" (Sigam os poucos, e não a gente comum).
Quando a igreja canoniza um homem ou uma mulher, propõe um modelo à generalidade dos cristãos. Declarar formalmente, com todas as garantias, que alguém levou uma vida santa é afirmar uma existência histórica que nada tem de utópica, como se pertencesse a um mundo idealizado pelo entusiasmo ou pela admiração. É uma vida que, no dizer do salmo, "viveu intensamente o seu tempo".
É claro que há variedade de modelos e que nem todos os modelos imagináveis esgotam a fascinante variedade dos caminhos humanos neste mundo. O homem sempre será surpreendente para o homem, e o que para alguns é trilha tortuosa pode ser, para muitos outros, um percurso luminoso.
A declaração da santidade de Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei, através de um ato pontifício formal no dia 6 de outubro, precisamente neste início de milênio, põe diante dos olhos um modelo de vida de relacionamento com Deus que pode ser seguido por quaisquer homens e mulheres ocupados nos seus afazeres diários. É um convite extremamente ambicioso e ao mesmo tempo perfeitamente exequível.
Ambicioso porque, perante a forte tentação da mediocridade ou da covardia para viver, o que Josemaría Escrivá ensinou e viveu dia após dia foi a procura da mesmíssima santidade, a maravilhosa experiência do trato íntimo com Deus, no meio das ocupações e deveres normais, comuns à maioria dos homens e mulheres da terra. Assim dizia, em 1967: "Não esqueçam nunca, há "algo" de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir". E também, na mesma ocasião: "Não há outro caminho, meus filhos; ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida de todos os dias ou não o encontraremos nunca".
A vida de todos os dias: nenhuma realidade legitimamente humana é alheia ao encontro com Deus. Trata-se de uma fusão do divino e do humano que não é confusão, mas unidade de vida, unidade de propósitos, unidade de esforços. O amor ao mundo, a liberdade e a responsabilidade no exercício dos direitos e deveres civis podem ser, e muitas vezes são, a melhor manifestação de um amor a Deus que não foge, mas abraça e assume "o peso do dia e do calor", o dia e o calor que a cada um corresponde pelo simples fato de viver.


O caminho da transcendência, para a maioria, pode ser encontrado nas realidades diárias


Exequível porque a existência inteira do novo santo esteve convictamente dedicada à normalidade. Josemaría Escrivá não quis nem pretendeu jamais fazer nada de espetacular; aliás, praticou e aconselhou a praticar o oposto, o que é corriqueiro. Ficou claro para muitos que a santidade não está numa espécie de Olimpo para os fora de série, que "a santidade não consiste em fazer coisas cada dia mais difíceis, mas cada dia com mais amor", que não é para tropa de elite e que, portanto, qualquer homem ou mulher, pelo simples fato de ser livre e batizado, está diante de portas abertas.
Isso é revolucionário e, ao mesmo tempo, não o é. Não é nada revolucionário porque está no Evangelho, nas epístolas de São Paulo e na vida dos cristãos dos primeiros séculos -gente comum que procurava levar a sério, apesar dos seus defeitos, a exigência de Cristo de serem "sal da terra e luz do mundo".
Mas, ao mesmo tempo, é revolucionário, porque a procura da santidade na vida de todos os dias abre campos imensos e inovadores para o aprofundamento na teologia das realidades terrenas, para a atuação livre e responsavelmente no meio do mundo, para a santificação da vida profissional, para que se assumam, diante de Deus e com a sua ajuda, os deveres familiares, para a participação com plena consciência dos acontecimentos públicos e dos grandes debates culturais e, enfim, para se secundar de forma mais abrangente a missão da igreja no mundo.
O ideal de santificar o trabalho e os deveres diários, que Escrivá viveu e ensinou como núcleo da mensagem do Opus Dei, supera uma visão que, por razões históricas, vigorou por séculos: a visão de que aspirar à santidade significaria se colocar "fora", ou pelo menos à margem, das correntes do mundo e da história. São Josemaría Escrivá pratica e diz que a santidade está "dentro", que desejar a plena união com Deus e amar os homens significa permanecer no próprio lugar no mundo, e quanto mais "dentro" melhor, pela enorme razão de que Deus, ao se encarnar em Cristo, assume plenamente a natureza humana.
Durante 30 anos, o verbo encarnado vive no seio de uma família e trabalha como marceneiro em Nazaré: mais "dentro", impossível.
A universal assimilação da mensagem de Josemaría Escrivá por pessoas de índole e mentalidade variadíssima tem o valor de um grito pacífico, oposto com audácia a esse pensamento débil que abandona o campo de batalha e a um espalhado cinismo, mais ou menos embebido de perfume ideológico, que joga a toalha antes de começar a lutar porque "não adianta fazer nada". O homem entra em crise quando ignora, esquece ou esconde o fato de que sua vida é transcendente. E o caminho da transcendência, para a maioria, pode ser encontrado nas realidades diárias e terrenas.
A canonização do fundador do Opus Dei é uma ocasião ímpar para considerar a vida dos santos, que mostram o caminho aos que batalhamos dia a dia contra a nossa mediocridade e mesquinhez. Mas, se, com palavras do novo santo, "cada geração de cristãos deve redimir o seu próprio tempo", a canonização deve ser também um forte apelo à consciência pessoal: "Estas crises mundiais são crises de santos".


Eugenio Carlos Callioli, 46, doutor em direito canônico pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma), é sacerdote da prelazia do Opus Dei.



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