São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mais vida, menos armas

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Todos os países admitem restrições aos direitos individuais quando seu exercício pode colocar em risco a vida de terceiros
Em 2002, a meu pedido, o Instituto Cidadania elaborou um programa para a área da segurança pública, que pouco depois se tornou o Plano Nacional de Segurança Pública. Implementado desde o início de meu governo pelo Ministério da Justiça, seu último capítulo tratava da necessidade de estabelecer um controle efetivo sobre as armas de fogo no Brasil. Um ano depois, em dezembro de 2003, o Brasil já tinha um instrumento eficaz para auxiliar na diminuição da violência: o Estatuto do Desarmamento.
Todos sabem que temos hoje uma das maiores taxas de homicídios do mundo. Uma situação que se deteriorou gravemente nas últimas décadas. Sociólogos, policiais, médicos e outros especialistas na questão atribuem esse crescimento ao enorme volume de armas em circulação no país.
Em 1980, por exemplo, os crimes contra a vida correspondiam a 19,8% do total de mortes por causas externas no Brasil, o que representou a perda de 13.910 vidas em um ano. De lá para cá, a incapacidade de elaboração de políticas eficazes para o enfrentamento do problema colocou o Brasil, em 2002, em um indesejável sexto lugar na comparação internacional envolvendo os 38 países com maior taxa de homicídios do mundo: o número de mortos chegou a 37.978 em um único ano. Essa triste evolução teve conseqüências sérias, já que a maioria das vítimas foram jovens entre 17 e 29 anos, vidas que representavam o futuro deste país.
O esforço para mudar esse quadro não é recente. Em 1997, o Brasil aprovou uma lei para melhor controlar as armas em circulação. Mas a lei previa um controle descentralizado de armas em circulação, não estabelecia vínculo formal entre os dados dos órgãos policiais e os órgãos militares e não dava nenhum incentivo à população que quisesse se desarmar. Com isso, a sociedade brasileira não viu avanços ou resultados positivos capazes de regular o nosso estoque de armas ou que promovesse, em definitivo, o desarmamento no país.
Com base nas premissas do Plano Nacional de Segurança Pública, o Ministério da Justiça participou ativamente da consolidação dos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional e resultaram no Estatuto do Desarmamento. Com o apoio da sociedade civil e o empenho dos parlamentares de todas as siglas partidárias, em seis meses a lei foi aprovada e, em 23 de dezembro, sancionada. Hoje, o estatuto não é apenas um instrumento dos brasileiros, mas um exemplo de legislação que interessa a muitos países.
A partir da aprovação da lei, o controle das armas foi centralizado na União, a cargo da Polícia Federal e do Comando do Exército. Portarias dos dois ministérios reforçaram restrições e controles definidos pela lei, como o uso e compra de armas e munições. Em seguida, determinei ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que divulgasse o estatuto. Isso foi feito com a Caravana do Desarmamento, que percorreu todos os Estados brasileiros e conclamou a população a aderir a essa causa que propõe desenvolver a cultura da paz em nosso país. A sociedade civil organizada, as igrejas, a imprensa, os governos estaduais e municipais, todos se engajaram na tarefa de retirar de circulação o maior número possível de armas. Foram criados diversos comitês regionais pelo desarmamento.
O governo estipulou uma indenização para quem entregasse suas armas, e os resultados foram surpreendentes. Inicialmente, nossa meta era recolher 80 mil armas de julho a dezembro de 2004, quase o dobro do que as polícias estaduais retiram anualmente de circulação. Mas esse número foi rapidamente ultrapassado, o que nos levou a prorrogar por duas vezes a campanha. Até o início da semana passada, já tínhamos 464.857 armas recolhidas.
O resultado do esforço do governo e da sociedade brasileira com a campanha pelo desarmamento foi positivo. Pela primeira vez em 13 anos, o número de mortes por arma de fogo caiu no Brasil. Pesquisa feita pelo Ministério da Saúde revelou que, depois do início da campanha, em 2004, o número de homicídios por arma de fogo diminuiu 8,2% em relação ao ano anterior. Os dados mostraram que, em um só ano, 3.234 vidas foram poupadas.
São números incontestáveis, já que o Ministério da Saúde cruzou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade com o número de armas recolhidas e revelou que as maiores quedas ocorreram justamente nos Estados que mais recolheram armas. Para confirmar ainda mais os efeitos positivos do desarmamento, a Unesco divulgou outra pesquisa, também no mês passado, na qual estimou como seria a progressão no número de homicídios caso a campanha não tivesse ocorrido e concluiu que mais de 5.000 vidas foram poupadas apenas em razão da campanha.
Agora, o Brasil tem a oportunidade de dar um passo além, com a realização do referendo popular que vai definir se a comercialização de armas deve ou não ser proibida no país. Contra a proibição, argumenta-se que o cidadão estará desarmado e que ele é o responsável pela sua vida. Esta, no entanto, não é uma responsabilidade individual, mas do Estado detentor do monopólio legítimo da violência e responsável pela segurança pública.
Sei que algumas pessoas, peritas em armamento, consideram a vedação ao porte uma ofensa a seu direito individual. Essas pessoas, contudo, são exceções, e a lei não é feita para as exceções. Todos os países do mundo admitem restrições aos direitos individuais quando seu exercício pode colocar em risco os direitos ou a vida de terceiros. O direito fundamental ilimitado por excelência é o direito de opinião.
Sei que exterminar a violência é difícil, talvez impossível. Mas, no dia 23, afinal, teremos a oportunidade de fazer algo eficaz contra ela. O suposto benefício representado pela posse de arma de fogo está muito abaixo dos incontáveis malefícios que ela produz. O desarmamento é medida valiosa para a salvação de muitas vidas preciosas. Em vez de atacá-lo, apliquemos nossas energias no fortalecimento das instituições responsáveis pela segurança e no combate à impunidade.
Por todas essas razões, como cidadão brasileiro, posiciono-me pelo SIM no dia 23 de outubro.
Luiz Inácio Lula da Silva, 59, é o presidente da República Federativa do Brasil.
www.planalto.gov.br/falepr/exec/index.cfm?acao=email.formulario


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